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sexta-feira, 2 de abril de 2010
LIVRO"CRÓNICAS DE UMA IDA À GUERRA"
AS FERIDAS INVISÍVEIS
CRÓNICA DE UMA IDA À GUERRA
DE: MANANGANO
FOTOS DO FOGO
Chega-te a mim
Mais perto da lareira
Vou-te contar
A história verdadeira.
A guerra deu na TV
Foi na retrospectiva
Corpo dormente em carne viva
Revi p'ra mim o cheiro aceso
Dos sítios tão remotos
E do corpo ilesoVou-te mostrar as fotos
Olha o meu corpo ileso.
Olha esta foto, eu aqui
Era novo e inocente
"`as suas ordens, meu tenente!"
E assim me vi no breu do mato
Altivo e folgazão
Ou para ser mais exacto
E assim me vi no breu do mato
Altivo e folgazão
Ou para ser mais exacto
Saudoso de outro chão
Não se vê no retrato
Nesta outra foto, é manhã
Olha o nosso sorriso
Noite acabou sem ser preciso
Sair dos sonhos de outras camas
Para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas
Estás são e salvo e logo
“viver é bom”, proclamas
Eu nesta, não fiquei bem
Estou a olhar para o lado
Tinham-me dito: eh soldado!
É dia de incendiar aldeias
Baralha e volta a dar
O que tiveres de ideias
E tudo o que arder, queimar!
No fogo assim te estreias.
Nesta outra foto, não vou
Dar descanso aos teus olhos
Não se distinguem os detalhes
Mas nota o meu olhar, cintila
Atrás da cor do sangue
Vou seguindo em fila
E atrás da cor do sangue
Soldado não vacila
O meu baptismo de fogo
Não se vê nestas fotos
Tudo tremeu e os terramotos
Costumam desfocar as formas
Matamos, chacinamos
Violamos, oh, mas
Será que não violamos
As ordens e as normas?
Álbum de fotos fechado
Volto a ser quem não era
Como a memória, a primavera
Rebenta em flores impensadas
Num livro as amassamos
Logo após cortadas
Já foi há muitos anos
E ainda as mãos geladas
Chega-te a mim
Mais perto da lareira
Vou-te contar
A história verdadeira
Quando a recordo
Sei que quase logo acordo
A morte dorme parada
Nesta morada.
Letra de Sérgio Godinho – canção do Álbum “Tinta Permanente”
IR À GUERRA E DEPOIS
A geração de portugueses nascidos durante a 2º. Guerra Mundial e que atravessou os piores anos da ditadura (os racionamentos, a fome, as prisões da Pide), viveu um dos períodos mais fecundos de criação de uma consciência cívica e política do nosso século XX. Apesar de todas as vicissitudes porque passou, essa geração viveu por dentro experiências singulares e incomuns de transformação política, civilizacional e cultural que lhe permitiram crescer e entender melhor os mecanismos que fazem andar o mundo - ou, pelo menos, era suposto que assim acontecesse.
Essa geração, que hoje rondará os sessenta e cinco anos de idade (nascida nos anos 1930), conviveu com a fome, com a intolerância mais irracional e rasteira, que não se estabelecia apenas a nível do Poder, mas que se institucionatizara tentacularmente passando da família, à Escola, à oficina, à fábrica, até às forças da repressão numa espécie de círculo opressor que impedia a livre escolha, mesmo que singular, como ir ao cinema, ao teatro, ler um livro, um jornal, escolher uma gravata, um fato, decidir sobre os desejos: ou seja, o pior do fascismo luso não incidiu, como nos seus modelos italiano e germânico, na violência descriminada sobre os dissidentes, grupos sociais ou opositores, em campos de morte (apesar do Tarrafal), mas penetrou mais fundo e mais duradouramente nos hábitos, nos costumes, nas formas de organização social.
O fascismo luso foi mais pernicioso que os demais modelos, porque incidiu sobre a cultura, penetrou, indelével mas eficazmente, a alma de um povo, enquanto os outros foram fenómenos efémeros e, felizmente, vencidos pelas correntes mais fortes e maioritárias do humanismo e da Liberdade.
Os sinais, essas marcas identitárias de quase cinquenta anos de imobilismo social, inculcados pelo Estado Novo, ainda hoje persistem tolhedores da modernidade e impeditivos do nosso progresso político, cultural e económico. O que o fascismo impôs à sociedade portuguesa, a nível dos imaginários colectivos, foi de tal forma obsessivo e absorvido pelo comum da população, que mesmo depois de Abril os poderes, tidos por democráticos, utilizam, à ultrance, aparentemente sem grandes constrangimentos ideológicos ou morais, as três vertentes fundadoras do obscurantismo salazarista nas suas derivas conservadoras: a Fé, o Fado e o Futebol - hoje, difundidas através de novos e mais poderosos meios de persuasão e capacidade de penetração nas mentalidades. A estas três vertentes, poderemos ainda acrescentar, a ficção novelesca de baixa extracção, os big brothers, a literatura ligth e uma música tida por popular, rasteira e boçal, que transforma o nacional-cançonetismo em música de qualidade.
Mas o salazarismo-caetanismo não se caracterizou apenas pela sua incapacidade de compreender a dinâmica das sociedades suas contemporâneas, de adaptar o país aos novos tempos do pós-guerra e de recorrer (como fez o franquismo, por exemplo) aos fundos do Plano Marshall para o desenvolvimento. Apostou no isolacionismo, na repressão e no atraso estrutural, para estabelecer o seu domínio e se perpetuar no poder, com o beneplácito hipócrita das democracias europeias e dos Estados Unidos. Este projecto, pensado e meticulosamente elaborado desde as anos 1930/40, começou a ser seriamente abalado pela perda da Índia (Goa, Damão e Diu), em finais dos anos cinquenta, quebrando o discurso hegemónico do Portugal uno e indivisível, e pela eclosão, a partir de 1961, das lutas de libertação nas colónias africanas.
A primeira e mais dolosa dessas frentes de luta, foi, sem dúvida, a de Angola, não só pelo significado económico e estratégico desse colónia, como pela dimensão e objectivos políticos da luta aí encenados pelas principais potências internacionais: a União Soviética, no apoio ao MPLA e os Estados Unidos (com a África do Sul do Apartheid) no explicito e tácito apoio à Unita de Jonas Savimbi. Sabe-se hoje, que a Unita funcionou, igualmente, em promíscuo conluio com facções ligadas ao poder colonial, usada como força de resistência à influência e atracção que a União Soviética então exercia sobre os jovens líderes africanos. Às lutas de libertação em Angola, seguiram-se Moçambique e Guiné, esta última mobilizando grandes esforços tácticos, operacionais e políticos, dada a sua posição estratégica particularmente sensível, a exiguidade territorial e o complexo tecido étnico e social em confronto. Foi a única das 3 colónias em que a guerra estava objectivamente perdida, tanto no plano político como militar, à data do levantamento que conduziu à revolução de Abril de 1974.
Os primeiros militares mobilizados para Angola, em 1961, tiveram a missão difícil e quase humanamente insuperável de ter de enfrentar uma guerra para a qual não estavam preparados técnica, militar e psicologicamente, em terreno hostil e perante um povo de que de todo desconheciam as mais básicas idiossincrasias, cultura, crenças e hábitos ancestrais. Tinham partido para Angola “em força”, obedecendo às ordens dos superiores hierárquicos e estes às determinações políticas de Salazar, sem que o poder da ditadura reflectisse sobre as condições, meios e logística próprios à intervenção que ordenava – é preciso salvar a face e manter a coerência de uma mitologia hegemónica do “espaço luso”.
Os resultados dessa ofensiva inicial das nossas tropas, dessa travessia sem bússola pela mata angolana, vai transcrita nas páginas deste livro de forma clara, surpreendente e, por vezes, chocante tal o realismo do descrito e a verdade pungente do relato que nos é transmitido na primeira pessoa. Este “As Feridas Interiores”, de Manangano, é, na sua crueza essencial, um documento único para a compreensão e conhecimento desses tempos de brasa e, sobretudo, dos sacrifícios impostos a uma geração desapossada dos mais elementares direitos, forçada, por isso, ( mesmo tendo em conta a propaganda do regime) a fazer uma guerra que não entendia e cujos contornos políticos de todo lhe escapavam. Este desabafo em forma de livro, é o grito de alguém que foi à guerra, que viu matar e morrer e que mais de quarenta anos volvidos ainda não conseguiu esquecer o que viu, porque a memória é uma ferida em sangue, o “ veneno” que “envenena” de que falava o Fernando Assis Pacheco. Essas feridas de dentro, as mais perenes, as que se não vêem mas vão corroendo os alicerces do ser, as feridas que devagar nos matam, por isso as mais dolorosas, as mais insuportáveis, estão expostas neste livro de forma corajosa e frontal. O autor assume a denúncia de um período em que o desvario da nossa intervenção militar em África se propunha exemplar e por isso exacerbava esse poder ao ponto de se confundir nos métodos com “terrorismo de Estado”, em tudo idênticos com o dos “turras” cuja propalada “barbárie” pretendia, na retórica e na propaganda, combater.
Não se pretendendo escritor, mas sentindo a urgência de passar esse testemunho geracional, essa experiência singular, Manangano acedeu a deixar-se “entrevistar” por mim, a contar-me a sua “ida à guerra” e os motivos que ainda hoje, volvidas quatro décadas e muito mundo depois, o fazem dependente de psiquiatras e terapeutas do foro psicológico, tornado, pelas circunstâncias excepcionais dessa experiência de guerra, num dos inúmeros ex-militares vítimas de stress pós-traumático. Desse relato raro e doloroso extraímos a essência e tentámos, através do discurso directo e intimista, que o mesmo fosse lido como uma narrativa, uma para-ficção, de modo a que o leitor pudesse estabelecer uma relação distanciadora com o texto, propícia à racionalização dos factos e à sua não envolvência emocional a que o horror do narrado, sem o recurso às técnicas da escrita literária, poderia conduzir o leitor, condicionando-o criticamente.
A nossa literatura de guerra, aquela que relata de forma ficcionada a trajectória de várias gerações que durante 13 anos percorreram os cenários das três frentes da guerra colonial, conta já com uma mão cheia de bons textos, alguns dos quais foram estreia dos seus autores nas letras nacionais. Essa experiência de guerra, se deixou marcas fundas em muitos dos seus protagonistas, contribuiu, a nível da nossa literatura contemporânea, para a mudança dos paradigmas imaginísticos e estéticos que no início dos anos 1960, e depois da dinâmica criadora do neo-realismo, pareciam tê-la transformado numa literatura auto-contemplativa, no dizer de Óscar Lopes, e encurralada nos labirintos circulares das suas propostas. Uma poesia de combate, claramente antifascista, com Manuel Alegre como marco fundamental, os baladeiros (com José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Luís Cília) juntamente com os primeiros textos sobre o conflito colonial escritos por Álvaro Guerra, Fernando Assis Pacheco, Manuel Alegre e, depois, António Lobo Antunes, João de Melo, Álamo de Oliveira, Carlos Vale Ferraz, vieram contribuir para o abrir da nossa cultura a uma outra realidade e para a assunção de uma intervenção cívica, através dos mecanismos comunicacionais, mais pujante e politicamente comprometida. A ficção usava a história como elemento fulcral e transformava o real vivido em objecto de rara qualidade literária.
Este livro de Manangano, aparece, neste contexto, como um corpo estranho porque não se pretendendo objecto literário, mas tão-só testemunho de alguém que foi à guerra e a quis contar e para isso utilizou alguns dos mecanismos que só aparentemente serão pertença da literatura. O testemunho que agora se dá à estampa, é um documento que considero único no panorama da crónica guerra, mesmo tendo em conta a quantidade (cerca de 200 títulos até hoje publicados) e a qualidade dos escritos que o conflito colonial suscitou aos seus autores. Este testemunho, que diz o, até hoje, indizível, o que nos corredores se sussurrava e sabia mas que, pelo horror das situações descritas, não houve coragem de transcrever e de denunciar publicamente.
Embora persistam, na sociedade portuguesa, muitas feridas do período colonial, este “As Feridas Invisíveis” é um livro útil, necessário e urgente. Sem enfrentarmos, de forma clara, corajosa e desassombrada, os nossos fantasmas colectivos, dificilmente conseguiremos ultrapassar os constrangimentos que os últimos anos do império geraram. A verdade desse período, os erros e omissões, terão de ser assumidos pelos seus protagonistas, por forma a podermos, definitivamente, nós e os povos que connosco percorreram os mesmos armadilhados destinos por mais de quatro séculos, virar a página. Este livro faz parte desse propósito.
Domingos Lobo
1. A 2ª. GUERRA MUNDIAL
Nasci em 1940, em Portugal. Em plena 2ª. Guerra Mundial, portanto. Aquando do armistício, tinha eu seis anos. Claro que me lembro dos tempos difíceis da guerra, das senhas de racionamento, nomeadamente para o pão, que constituía, na altura, a base da nossa dieta. Minha mãe mandava-me a pé para Salvaterra, para que eu conseguisse arranjar uma senha. Teria os meus cinco, seis anos. Depois de muito tempo nas filas, lá conseguia um determinado alimento, as coisas básicas, pão, café, açúcar, sabão, outras coisas. Recordo-me que os mais velhos, valendo-se da minha inocência – não acontecia só comigo, também acontecia com outros miúdos – roubavam-nos as senhas e, com elas, conseguiam mais alimentos. Quando a minha mãe, mais tarde, chegava para me ajudar a levar o avio, encontrava-me de mãos vazias e a chorar, “mãe, roubaram-me as senhas”. Os meus seis anos trágicos, com uma guerra lá longe de que só sabia pelas mãos e o estômago vazios.
Também, nesse tempo, os rapazes da minha geração andavam descalços e, até, para a Escola íamos (apesar de haver uma lei que o proibia) sem nada nos pés, quer de Inverno quer de Verão. Sei que os meus pais foram ameaçados, mais do que uma vez, pelos guardas, de pagarem multa por eu andar descalço, mas não havia nada a fazer: o dinheiro dava à justa para a comida, não sobrava nada para luxos.
Acabada a guerra, em 1946, as coisas começaram gradualmente a ser mais fáceis. Continuei a ir à escola, em Benavente, e aí acabei a 4ª. Classe.
Durante todo o tempo que andei a estudar em Benavente, sentia que estava afastado da escola, não porque eu fosse falho de inteligência, mas, sobretudo, porque eu me sentia diferente das outras crianças. Depois, os professores tinham determinadas preferências, havia alunos e alunos, existia uma nítida separação e eu não me sentia bem nesse ambiente, rebelava-me porque sentia que os professores se dedicavam mais àqueles que tinham posses e que poderiam continuar os estudos, e relegavam para segundo plano os de origem mais humilde que, nas condições sociais da época, dificilmente permaneceriam na escola depois de concluído o período obrigatório. Isso, para além de me entristecer, revoltava-me. Comecei, assim, desde muito novo, a perceber as diferenças sociais, a estratificação das classes e os estigmas que desde criança nos eram impostos por um regime segregacionista, imoral e profundamente injusto.
Nessa altura comecei a sentir algumas exigências por parte dos meus pais, porque os nossos rendimentos eram muito baixos e havia necessidade de mais um braço que pudesse equilibrar o orçamento. Os trabalhos no campo eram difíceis, os meus pais eram assalariados rurais e, nesse tempo, os campos ficavam inundados no Inverno e não permitiam que houvesse trabalho durante largos períodos. As dividas acumulavam-se, ficava-se a dever nas lojas e só se pagava no fim do Verão, depois das safras, para se retornar depois ao mesmo ciclo de fome e de miséria. Para agravar as coisas, por volta dos meus dez anos tive uma doença pulmonar que me deixou numa situação complicada, os meus pais não tinham dinheiro para me mandar curar, eu necessitava de uma alimentação mais regrada do que a que era comum lá em casa – e nas casas de grande parte da população rural. Com bastante esforço e cumplicidade entre todos os membros da família (havia, nesse tempo, um grande espírito de entreajuda, mesmo entre vizinhos), lá consegui ultrapassar a situação. Os meus pais tinham uns pedaços de terra, que, embora lhes não pertencessem, era terra alugada, que granjeavam e daí tiravam algum sustento para a sobrevivência do dia a dia.
Uma vez, lembro-me que a minha mãe, teria eu os meus dez, onze anos, me disse para eu ir ao padeiro, buscar o pão que estava encomendado. Os meus pais tinham ido para o campo e eu tinha ficado encarregue daquela função. Cheguei à padeira, disse-lhe, dona Rita, venho buscar o pão que a minha mãe lhe encomendou. Ela olhou para mim, com um ar pesaroso, e disse-me, Olha filho, vai para casa porque não há pão enquanto os teus pais não vierem cá pagar o que me devem. Fui para casa, muito triste e a chorar, claro. A minha sensibilidade levava-me a pensar que a situação era muito grave e, sobretudo, não sabia como havia de dar a notícia a minha mãe. Quando todos chegaram do trabalho, os meus pais, os meus irmãos, perguntaram-me, Então, onde está o pão, eu, contristado, respondi, Pão, não há, porque a senhora disse-me que enquanto não se pagar a conta que lá está não há mais pão para ninguém. A minha mãe, percebendo a minha atrapalhação, o constrangimento que tudo aquilo me causava, pôs-me a mão na cabeça e disse, Filho, pronto, não é preciso chorares, nós vamos resolver o problema. E assim foi: fomos a casa de uma tia minha, pessoas que viviam um pouco melhor que nós, pedimo-lhes algum dinheiro emprestado e fomos pagar parte da dívida à padeira para que pudéssemos levantar o pão para esse dia.
Este quadro de miséria absoluta, de ver que os meus pais e os meus irmãos se esforçavam a trabalhar sem que esse esforço melhorasse as nossas vidas, foi criando lastro, desenvolvendo dentro de mim uma grande revolta e um apurado sentido das injustiças do mundo. Essa revolta, penso, havia de me marcar para a vida toda. Comecei a entender o mundo em que vivia muito cedo, aos dez anos, e isso deixa marcas indeléveis que nunca mais se apagam. Ao mesmo tempo, os horizontes fechavam-se, sabia que as minha oportunidades eram quase nulas, que o meu destino seria seguir o caminho de meus pais e dos meus irmãos, e ir para o campo. E assim foi. Estive a trabalhar no campo até perto dos dezanove anos. Claro, que nessa altura sentia com muito mais acuidade as dificuldades familiares e, então, decidi fugir de casa. Bem, fugir de casa não é bem o termo: não saí de casa zangado, como era hábito nesse tempo, mas por sentir que a minha vida a continuar assim, não teria futuro. Pensava, igualmente, que dessa forma poderia ajudar os meus pais. Fugi, aos dezanove anos, para Lisboa, que era o espaço que me estava mais próximo e onde me seria mais fácil conseguir trabalho. Fui então trabalhar para uma firma de construção civil. Comecei como manobrador de máquinas, ou seja, consegui ultrapassar as tarefas de quem se inicia na profissão, ajudante de pedreiro, pedreiro, etc., e fui logo para manobrador de máquinas o que me permitiu ter um ordenado um pouco superior. Estive nesse trabalho até ir para a tropa. Aos vinte, vinte e um anos, fui para o quartel de Beja, onde permaneci alguns meses, depois fui para o aquartelamento de Elvas, em Lanceiros 1, e fui para uma especialidade de condutor de máquinas pesadas, tendo em conta a minha experiência como manobrador de rectroescavadoras. Claro que eu, na altura, ainda não tinha carta de condução, e foi em Lanceiros 1 que tive as primeiras lições. Aí jurei bandeira e fui depois transferido para a Escola Prática de Engenharia, onde me especializei naquilo que mais gostava. Fiquei na Escola Prática até à data da mobilização.
2. Ir à Guerra
Não estava, confesso, à espera de ser mobilizado, tinha já vinte e dois anos, pensava que me safava, mas no último momento lá chegou a malfadada ordem. Para quem se preparava para fazer 20, 26 meses de tropa, foi realmente um balde de água fria. O meu azar foi a guerra ter começado, estávamos em 1961 e não havia fuga possível. “Para Angola, e em força”, era a ordem salazarista. Fui promovido a 1º. Cabo e embarquei para Angola.
Devo dizer que o meu tempo de tropa, constituiu, talvez, o tempo mais importante do meu crescimento, como homem e como ser humano. Não só porque aprendi muita coisa, coisas que me serviram depois para a minha vida profissional. O importante na vida das pessoas é fazermos aquilo de que gostamos, e eu gostava de fazer o que fazia, apesar dos constrangimentos da guerra e dos horrores a que assisti. Mesmo isso, a guerra e seus naturais terrores, todas as guerras são inumanas e cruéis e a guerra de Angola não foi excepção, obrigam-nos a crescer, a olharmos o mundo de forma diferente e a regressarmos aos resquícios da nossa humanidade essencial. E foi isso, essa essência do ser, que a guerra me deu, para além da capacidade de olhar os homens de forma muito mais realista e sem as carapaças, sem a hipocrisia com que nos vestimos no nosso quotidiano: na guerra estamos sós, ao espelho, e nus.
Foi para Angola, no segundo contingente, e fui integrado num destacamento de Engenharia, integrado na Companhia de Comando e Serviços. Quando cheguei a Luanda, fui para o Quartel de Engenharia mas, como não havia vagas dado que estavam a chegar muitos contingentes, fomos instalados nos subterrâneos da Emissora Católica de Angola. Claro que, dadas as condições que eram muito precárias, ficamos muito mal instalados. Mas foi por pouco tempo; entretanto as coisas organizaram-se e fomos para o Quartel de Engenharia, que ficava mesmo em frente da Emissora Católica. Fui então integrado numa Companhia que ia realizar uma grande operação no Norte. Fiquei encarregue de manobrar uma máquina de terraplanagem que tinha como função abrir caminhos na mata para que a Operação fosse possível. Estamos a falar de zonas de floresta densa, quase tropical onde a progressão era muito difícil e os caminhos inexistentes. Por isso, eu e a minha máquina éramos considerados, pelos meus camaradas, uma espécie de deuses ex-máquina
3. Os horrores da Guerra. A Morte
Iniciámos a operação a partir do Caxito e daí seguimos em direcção a Ucua, na região dos Dembos. Estas zonas são belíssimas, de uma beleza quase primitiva, de uma vegetação luxuriante e agreste. Quando chegámos a Úcua, o cenário era de destruição e morte, de um horror quase indescritível: cadáveres espalhados pela mata, mutilados, estripados, um horror dantesco que de repente se apresentava perante os nossos olhos, olhos ainda habituados à planura das lezírias e à suavidade das nossas dores mansas. Aquilo era a imagem dos pesadelos, dos nossos terrores mais íntimos, e estavam ali, à nossa frente, corpos e corpos nus, brancos e pretos misturados, violentados pelas balas, pelas bombas, decapitados pelas catanas, pelos engenhos de morte. Era um vasto campo de morte e putrefacção que empestava o ar e nos calava de espanto e estupefacção. O estupor absoluto, a guerra em toda a sua crueldade e plenitude. E eu impreparado para aquilo, eu apenas sabedor de máquinas e da forma de desbravar caminhos, estupefacto perante a realidade mais crua, o mais absoluto terror. Só queria sair dali, fugir, embrenhar-me na mata para não ver. E comecei a pensar no absurdo de tudo aquilo, o que é que levava os homens a matarem-se, a destruírem-se com aquela crueldade, interrogava-me e interrogava os meus camaradas. O que é que estamos aqui a fazer, foi para isto que viemos para África, para nos matarmos? Aquilo não era justo, não existia qualquer justificação para o absurdo. Quem ganha com isto, quem está na sombra, que não conhecemos, de quem nunca ouvimos falar e que estão a beneficiar com este morticínio. Que obscuros interesses se escondiam por detrás da morte. Os chamados “turras” tinham uma justificação, política e ideológica: estavam a encetar uma guerra de libertação, queriam ser, finalmente um povo com direito a ser dono do seu próprio destino, mas nós, para além dessa vacuidade dos discursos do Salazar “da defesa das províncias ultramarinas”, o que é que nos mobilizava, porque nos mandavam matar e morrer?
Claro que eu na altura não tinha qualquer preparação política, não sabia se era de esquerda ou de direita, mas sabia pensar, que é um vício terrível. Penso que era uma questão temperamental, ainda irracional, herdada do meu pai, que olhava a realidade com a mesma revolta, o mesmo sentido crítico. Recordo-me, apenas, de ter algumas reuniões clandestinas no Pinhal dos Palhas, dos panfletos mobilizando para as greves nos campos pela jornada de oito horas, por melhores salários e pelo fim das praças de jorna. Lembro-me das cargas da GNR sobre os trabalhadores a mando do patronato. Mas eu era muito jovem e essas coisas passavam-me um pouco ao lado. Mas sentia, no fundo sabia que a vida que nos obrigavam a viver não estava certa, que era preciso mudar as coisas – isso eu sabia. Depois, em Lisboa, na tal empresa, contactei com alguns camaradas que já tinham alguma consciência de esquerda, que eram críticos em relação à situação, e isso levou-me também a repensar as coisas. Lembro-me que uma vez me convidaram para uma reunião clandestina nos arredores de Alenquer – eu, na altura, nem sabia onde ficava Alenquer. Fui a essa reunião através de um código secreto, senha e contra-senha, uma forma que o Partido tinha, na clandestinidade, para impedir que a polícia política (a PIDE) se infiltrasse. Quando cheguei a Angola e perante aquelas cenas de morte, comecei a ter a certeza de que aquilo que pensava tinha razão de ser, que eu estava certo.
Depois de Ucua, partimos para o Pir. Eu, na altura, ia integrado num Batalhão de Infantaria. Quando chegámos ao Pir íamos arrasados, sem forças. Andávamos a ração de combate, a água imprópria, a desbravar caminhos – éramos quase pioneiros numa região inóspita. Estacionamos no Pir para recuperarmos as forças que não davam para mais. Era necessário recuperar material, que tinha sofrido grande desgaste, e voltarmos a ter mantimentos, que estavam a chegar ao fim. O abastecimento só podia ser feito por meios aéreos, de modo que eu e os meus camaradas, tivemos que abrir uma pista no Pir, através da mata, para que os aviões de abastecimento pudessem aterrar. Para cúmulo, a máquina avariou, nós não tínhamos forma de a reparar sem peças que tinham de vir de Luanda, de modo que o resto da pista foi aberta à custa de enxadas. O primeiro avião a aterrar nessa pista, era um avião particular, possivelmente donos da propriedade, dos cafezais, com seis ou sete passageiros, que traziam alguns víveres. Nessa altura estávamos quase sem nada para comer e a situação começava a ser trágica. Só que os víveres não eram para nós, para a tropa miúda, mas para os oficiais, para os senhores. Nós estávamos há já alguns meses, a ração de combate, a tripa curta. Mas a paparoca não era para nós. Os senhores, com o Comando, instalaram-se num varandim que por lá existia, e manducaram do bom e do melhor. Enchi-me de coragem, a fome é irracional, e dirigi-me ao local do banquete. O Major (ou Capitão, já não me recordo) olhou para mim com ar arrogante e perguntou-me o que é que eu queria dali. Respondi-lhe que nada, não quero nada, meu Major, só assistir ao repasto, ao vosso belo banquete. A criatura, espumando de raiva, começou a insultar-me, a humilhar-me. Tive, nesse momento, a certeza de que a nossa presença ali, naquele teatro de guerra, era apenas utilizada como “carne para canhão”, só para isso servia e para justificar mordomias, que nada significávamos, éramos meras marionetas a utilizar conforme o jogo. E estávamos ali, 300, 400 homens, com a fome a apertar e a olhar a afronta daquele grupelho a banquetear-se do bom e do melhor, e sem reagir. E nós, tínhamos armas, e jeeps, e força. Podíamos, se tivéssemos consciência política e colectiva, virado a afronta a nosso favor e, quem sabe, o destino da guerra. Claro, que essa situação só contribuiu para acentuar a revolta, não só a minha, penso, também a de um ou outro da minha Companhia eram capazes de sentir a mesma revolta. A fome, por vezes, também contribui para abrir as consciências.
Do Pir até Nambuangongo, começamos então a ver o que era a guerra, a guerra de guerrilha. Eu, limitado ao meu território da máquina, a abrir caminhos na mata, e os meus camaradas sujeitos todos aos ataques da guerrilha. Estávamos em pleno território da, então, UPA (União dos Povos de Angola). Fomos atacados várias vezes, à catanada, sobretudo. Lá ficaram alguns camaradas meus, incluindo o clarim, que foi morto com arma de fogo, pelo António Fernandes, um mestiço dissidente do nosso exército. O clarim tornava-se um alvo fácil porque era detectável pelo som. A nossa sorte foi a UPA, nessa altura, não estar armada, ou estar pouco, com armas convencionais, porque se estivesse muitos de nós teriam perecido nesse chão de África. Mesmo nós, ainda só tínhamos velhas mauzer’s, uma ou outra FBP, granadas de mão, bazookas e pouco mais. De modo que a luta era quase corpo a corpo, embora desigual, porque nós, apesar de tudo, possuíamos armas. Valia-lhes, claro, o factor surpresa porque eles conheciam bem o terreno, movimentavam-se nele sem quase serem pressentidos.
Os nossos mortos foram lá enterrados, não sei se mais tarde os trouxeram para Portugal, mas na altura tivemos que os deixar lá, não havia outra forma.
A guerra tinha de continuar. Prosseguimos a caminhada e chegámos ao Alto Danje. Aí deparámos com uma ponte que estava destruída, - tinha sido destruída para nos impedir a progressão, naturalmente. Aí ficámos mais uns dias, dias terríveis de luta contra os elementos, contra a guerrilha e, sobretudo, contra as nossas capacidades físicas que estavam no fio. Sem logística, sem nenhuma forma de sermos abastecidos, com a fome a apertar, tivemos de contornar o rio e fazer a progressão por outro lado, obrigando-nos a desvios de quilómetros através da mata.
Ao passarmos o Alto Danje, uma das Companhias do meu Batalhão, desviou-se para a zona de Vista Alegre e Aldeia Viçosa. O resto do Batalhão seguiu na direcção do Alto do Luíca. Aí foi tremendo. A progressão era difícil. Tínhamos uma subida de cerca de oito quilómetros através de mata densa, com obstáculos de todo o género, desde ataques da guerrilha, cursos de água, vegetação cerrada. Quando conseguimos, finalmente, encontrar um pontão e passá-lo, lemos um papel que estava preso num embondeiro, que dizia “todo o branco que conseguir passar, vai morrer”. E isso aconteceu, tivemos mais 4 baixas.
Levámos 4 dias a fazer a subida, o que dá uma ideia das tremendas dificuldades. Chegados ao Alto do Luíca, voltámos a descansar: as pernas já não obedeciam, já não sentíamos o corpo, já nada em nós reagia. O capitão ainda mandou tocar a sentido, (a absurda mania das normas castrenses) mas qual sentido qual nada, nem o clarim conseguiu dar as notas. Nestas deploráveis condições, conseguimos descansar um dia e uma noite. Na manhã seguinte, o maldito clarim, já refeito, lá tocou o despertar, a reunir, e encetámos a marcha. Connosco seguiam alguns fazendeiros brancos, que nos serviam de guias. Eram conhecedores do terreno e sabiam das ciladas possíveis. Alertaram-nos para o perigo que podia surgir, mais à frente, na sanzala do Mocondo. Nessa aldeia, estariam, segundo eles, cerca de 2000 guerrilheiros. Havia o perigo de um ataque, de luta corpo a corpo. Na aldeia, segundo as informações que possuíamos, toda a população, que seria afecta à UPA, estaria preparada para nos atacar. Era aí, na sanzala do Mocondo, que eles procuravam cumprir a ameaça de “nos matar a todos”. E o recontro deu-se, inevitável. Luta corpo a corpo, palhota a palhota, no meio dum fogo dos infernos. Tivemos 4 baixas. Todos ficaram enterrados naquele chão. Conto como foi, e ao contá-lo, tantos anos depois, ainda sinto o revolver das entranhas.
Quando nos preparávamos para sair do Alto Luíca, presenciei uma conversa via-rádio entre o nosso capitão e o comandante de Sector. O nosso capitão informava que não devíamos prosseguir para além do Alto do Luíca porque essa era a informação que os nossos guias nos transmitiam. Mas o comandante de Sector deu ordens para que avançássemos custasse o que custasse, nem que esse avanço representasse a vida de todos nós. De nada valeu as explicações do meu comandante, as dúvidas e os alertas dos guias. Era preciso avançar, Quem manda sou eu, dizia o comandante de Sector, Mas como, meu comandante, se não temos apoio aéreo, estamos sós, Não te preocupes, ripostava o comandante, imperial e determinado, eu trato disso: vou mandar para aí um bombardeiro carregado de napalm. Meu comandante, mas isso não é possível, a Convenção de Genebra impede-nos de utilizar napalm, Isso é à minha responsabilidade, respondia o comandante de Sector, pondo termo à conversa. Passadas umas horas, assistimos ao fogo dos infernos a incendiar os céus da aldeia do Mocondo e a dizimar toda a população indefesa, incrédula com o que lhe acontecia, os animais, a vegetação. Lembro-me sempre desse pesadelo, quando vejo o Apocalipse Now, do Coppola. Só que nós fizemos isso antes dos americanos, embora o tenhamos feito com a mesma desumanidade e igual impunidade. Claro que era impossível contabilizar os mortos depois daquele inferno, mas pelas minhas contas morreram na aldeia mais de mil pessoas, entre mulheres, velhos, crianças e guerrilheiros, naturalmente. Mesmo assim, quando entrámos na aldeia, alguns guerrilheiros sobreviventes ainda corriam para nós, para nos atacar: era o absurdo em toda a sua dimensão trágica. Quando lhes perguntámos porque avançavam para nós, sem armas, sem nada, respondiam-nos que “o preto não tem medo de bala de branco; morre aqui, nasce além”. Era uma versão radical de alguns textos dos nossos poetas neo-realistas quanto afirmavam que “por cada um que tombasse mil se levantariam”: uma leitura lateral do marxismo para servir os desígnios da luta ideológica.
O feitiço volta-se, quase sempre, contra o feiticeiro. E, neste caso, nós só tivemos, 5 baixas, um número residual comparado com as centenas de corpos que ficaram espalhados pelo kimbo: afinal, nós passámos e eles ficaram caídos no seu próprio chão e com eles muitos inocentes. Eu, o deus-máquina, fiquei encarregue de abrir uma vala onde coubessem todos aqueles cadáveres: era preciso esconder a vergonha.
A operação Mocondo, foi considerada, na altura, uma operação fundamental para limitar as bases da guerrilha naquela zona e libertar Nambuangongo. Estiveram lá repórteres da Emissora Nacional que seguiram toda a operação, descrevendo de forma muito limitada, tudo aquilo. Nós estávamos a ouvir a rádio, os locutores a dizerem que tudo “estava bem com as nossas tropas” e nós, ao mesmo tempo que isto ouvíamos, enterrávamos 5 cadáveres nossos, para além das centenas de africanos atirados para a vala comum. Esses documentos, da nossa rádio oficial, se existem, não poderão ser usados quando se fizer a história definitiva desses dias como documentos fidedignos, que o não são. Mas a história, como sabemos, nunca é definitiva e nem sempre fiel aos acontecimentos que relata; está sempre condicionada por circunstâncias que lhe são exteriores, de acordo com os interesses do momento ou com as convicções de quem a escreve.
4. As Feridas Invisíveis
Prosseguimos a marcha, com alguns prisioneiros (poucos, a maioria dos guerrilheiros conseguiu fugir para a mata) e chegámos a outra aldeia chamada Muchuando, onde estacionámos mais uns dias. Aí ainda tivemos alguns recontros com a guerrilha, mas sem grande importância, uns ataques com canhâgulos, catanas e pouco mais. Não tivemos baixas. Os nossos problemas já não eram o medo da morte, já tínhamos convivido tanto com ela que já não nos afectava; ou afectava, só que nós já lhe estávamos indiferentes. Os nossos problemas eram físicos, era o cansaço, a má alimentação, o calor, as condições em que nos era dado sobreviver. Claro que por dentro ia crescendo essa ferida sem nome, esses lanhos invisíveis que um dia haveriam de explodir. Mas ali, no meio da mata, no reino dos assombros e do medo, a nossa única preocupação era sobreviver, era prolongar o instante porque cada minuto contava: não nos sobrava tempo para nos pensarmos, para introspecções mais ou menos psicológicas.
O tempo que ficámos em Muchuando se deu para retemperar as forças, deu-nos tempo para outras tarefas mais práticas: abrimos uma pista, criámos algumas infra-estruturas básicas. Desde o Pir, Mocondo, Muchuando, pelas localidades por onde passávamos, íamos estabelecendo unidades, criando formas de controle. Ou seja, o Batalhão ia-se disseminando pelas zonas conquistadas, actuando como um verdadeiro exército de ocupação.
De Muchuando seguimos para o Tar e Lifune. Nessas povoações também tivemos alguma resistência mas sem grandes consequências. A nossa experiência, nessa altura, já era grande de modo que nos era mais fácil ultrapassar esses focos da guerrilha. No Lifune tivemos que construir outra ponte, demorámos alguns dias, foi uma tarefa extremamente complicada, era tudo feito a braços, quase sem equipamento adequado, a minha máquina era o único apetrecho preparado para aquelas tarefas. Aí, durante a construção da ponte, sofremos vários ataques da guerrilha e tivemos mais uma ou duas baixas, já não me recordo bem.
Quando chegámos a Nambuangongo, juntaram-se-nos mais três unidades: o Batalhão 114, ficou em Beira Baixa. Consideraram não ter condições para avançar, não tinham máquinas, não tinham apoio logístico, de modo que ficaram estacionados em Beira Baixa. O Batalhão 149, que ia no trajecto de Ambriz, em direcção a Zala, juntou-se-nos. Todo o percurso em direcção a Zala foi fácil, não havia obstáculos, as picadas eram razoáveis, no resto serviram-se das picadas que a minha unidade tinha construído. ( O meu Batalhão, para que conste, era o 96).
Chegados a Nambuangongo, foi a grande confusão. Para lá confluíram 3 batalhões, a Força Aérea, os Pára-quedistas, Comandos, etc. Apareceu, entretanto, um comandante dos Pára-quedistas a dizer que iam saltar sobre o objectivo e que nós teríamos de fazer um círculo em volta, nas zonas mais baixas, de forma a pudermos apanhar todos os que tentassem fugir. Ou seja, cabia-nos a parte menos activa da operação e aquela que em termos operacionais seria apenas subalterna, de recolha de sobejos. O comandante do meu Batalhão entendeu que assim não valia, que depois de todo o esforço e luta para chegar a Nambuangongo não iríamos ficar com as sobras da operação. Recordo-me que houve entre o meu comandante e o comandante dos Páras um diálogo muito aceso que levou a um conflito de comandos. Resultado: ficámos sem comando durante uns tempos, gerou-se alguma indefinição entre o comando de Batalhão e o Estado Maior, levando a que o nosso comandante de Batalhão fosse transferido para Moçambique. Claro que o que estava em causa era uma filosofia antagónica, não sobre protagonismos, mas sobre formas de actuação no terreno. Esta situação deixou-nos indignados, não queríamos aceitar o afastamento do nosso comandante, não só porque tínhamos confiança nele como tínhamos criado relações afectivas, o que é essencial em situações extremas como aquelas em que vivíamos. O nosso Tenente-Coronel Maçanita, era um homem recto e moderado, soube-mo-lo mais tarde, em contraste com as opções mais extremadas, de terra queimada que eram as opções que se desenhavam no terreno.
5. Em Nambuangongo, tu não viste nada
A Operação Nambuangongo foi muito complexa. Algumas companhias estacionaram em Quipedro, outras em Nambuangongo e outra em Onzo. Eu, entretanto, fui dar apoio a várias unidades de Infantaria, para Vista Alegre, Aldeia Viçosa. Aí, deparei-me com uma situação perfeitamente insólita, se é que existem na guerra situações lógicas e racionais. Fizemos o envolvimento a uma aldeia na convicção de que ali existiriam guerrilheiros infiltrados. A ideia inicial, pelo menos a que nos tinha sido transmitida, era a de se fazer o envolvimento do kimbo e tentar capturar algumas pessoas para depois serem interrogadas. Não foi isso que aconteceu, infelizmente. O comandante, alterando a ordem inicial, ordenou-me que entrasse na “aldeia” com a rectro e destruísse todas as palhotas, tudo o que encontrasse pela frente. Olhei-o, espantado, a estupefacção a morder-me as entranhas. Não queria acreditar em tamanho absurdo. Voltei-me para ele, olhei-o nos olhos e disse-lhe que não com a firmeza possível, isso eu não faço. O que me ordena é crime, é uma desumanidade sem nome. O comandante continuou a olhar-me furioso, o olhar desvairado, espumando de raiva e ameaçou-me com o Conselho de Guerra, “faço-lhe a folha”, disse-me aos gritos, a fúria castrense toda espelhada nos olhos dementes. Não tenho medo de tribunais, de conselhos de guerra, de prisões, meu comandante, só tenho medo da minha consciência: isso, eu não faço – sou um soldado, não sou mercenário nem assassino. Voltou a gritar, a loucura a tomá-lo por inteiro, ou então era eu que imaginava que os homens em seu juízo se não podiam comportar assim. Ordenou-me que saísse da máquina, a arma apontada. Saí e afastei-me para não ver o que já imaginava.
A noite fez-se mais funda, o silêncio a doer nos ossos, o corpo trémulo do paludismo, das febres, de todos os assombros. A bulldozer entrou no kimbo e destruiu tudo, tudo, as palhotas, os haveres, as mulheres, os velhos, as crianças, tudo o que dormia no coração grande e silencioso da mata – a minha máquina transformada em máquina do inferno, arrastando na noite os gritos, a dor, o sangue, os pesadelos todos. Fechei os olhos, recusava-me a ver o inenarrável estertor dos sobressaltos, as marcas do horror cravadas na pele para a vida toda.
NAMBUANGONGO, MEU AMOR
Há um veneno em mim que me envenena,
Um rio que não corre, um arrepio...
Fernando Assis Pacheco – Cuidar dos Vivos
Em Nambuangongo tu não viste nada,
não viste nada nesse dia longo longo
a cabeça cortada
e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo.
Falavas de Hiroxima, tu que nunca viste
em cada homem um morto que não morre.
Sim nós sabemos Hiroxima é triste
mas ouve em Nambuangongo existe
em cada homem um rio que não corre.
Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto
Em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece
em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu. Tu
não sabes mas eu digo-te: dói muito.
Em Nambuangongo há gente que apodrece.
Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.
É justo que me fales de Hiroxima.
Porém tu nada sabes deste tempo longo longo
Tempo exactamente em cima
do nosso tempo ai tempo onde a palavra vida rima
com a palavra morte em Nambuangongo.
Manuel Alegre (Livro “Praça da Canção”)
6. OUTRAS GUERRAS
Depois do episódio de Nambuangongo, fui sendo colocado em diversas Companhias. Nunca mais vi o oficial que me tinha ameaçado. O caso da minha eventual punição, ficou por aí.
A guerra, depois de Nambuangongo, começava a ser mais branda no Norte, também menos cruel. Continuámos, claro, a ser atacados, em emboscadas, mas eram coisas esporádicas e sem graves consequências. Podíamos, finalmente, descansar um pouco dos meses de desgaste físico e psicológico.
O nosso trabalho, que tinha sido pioneiro, permitiu que diversas unidades se estabelecessem no terreno e pudessem controlar melhor os movimentos dos guerrilheiros. Toda a região dos Dembos estava controlada, com unidades espalhadas nas zonas mais sensíveis.
Esta nova realidade, o estarmos finalmente acantonados, permitiu que passássemos a comer de forma mais decente: abandonámos a ração de combate, era possível agora comermos refeições quentes, um luxo a que já tínhamos perdido o gosto.
A partir de então, a minha máquina passou a ter uma missão muito mais pacífica, retornando ao essencial da sua função. Fazia abrigos, abria estradas, aplanava os terrenos para os kimbos, pistas para o Nord-Atlas, o pássaro grande que nos trazia a paparoca e as notícias da família e das namoradas e as notícias (sempre vigiadas) do mundo.
Fui colocado depois num Esquadrão de Cavalaria, o 149, que passou a dar-me protecção, a mim e a outros camaradas do Batalhão de Engenharia. Nesse Esquadrão, onde estive integrado alguns meses, acabei por fazer grandes amizades. Aliás, nós tínhamos vinte anos, a generosidade própria dos verdes anos e a nossa situação extrema, as angústias e os medos vividos em comum, modelaram amizades para a vida toda. Existia, compreendi-o então, um espírito solidário, de fraterna camaradagem que nos uniu. Aliás, se assim não fosse, esses dias da guerra teriam sido ainda mais insuportáveis. Pertencíamos ao mesmo país, fazíamos parte da mesma cultura, tínhamos a mesma língua – embora pertencêssemos a regiões diversas. Isso, e os medos ungidos em comum, uniu-nos para sempre. Por tudo isso, pelo que passámos juntos, pelo que sofremos juntos, por tudo o que vimos e fizemos, ainda hoje, passados todos estes anos, quando nos encontramos, é uma festa, é o reencontro de irmãos.
Em relação a isto, à amizade, a guerra foi muito importante, obrigou-nos a olhar o outro, a cuidar do outro, a não olharmos apenas para os nossos pequenos problemas pessoais, as nossas angústias, os nossos sonhos, o nosso estrito mundo: a guerra fez-nos solidários.
Antes da guerra, eu apenas conhecia os rapazes e as raparigas da minha terra e da minha geração, os poucos colegas de trabalho, pouco mais. A guerra abriu-nos ao país, a gente do norte e do sul, a filho de muita mãe, como então se dizia. Os desconhecidos passavam a ser os nossos amigos mais chegados, os nossos mais íntimos confidentes, como sempre nos tivéssemos conhecido, como se não existissem distâncias geográficas, modos de vida diversos – a guerra unia o que era diferente, o que andava solto.
Estive numa unidade de Comandos, de tropa preparada, treinada para os combates mais duros, mentalizados para uma obediência quase canina aos ditames do poder, sobretudo preparados para não pensar, para não questionar as ordens do superiores hierárquicos, mesmo quando essas ordens eram arbitrárias e injustas; moldados, ao estilo americano, para as missões mais difíceis no plano militar mas igualmente no dos direitos humanos. Nessa Unidade tive a oportunidade de conviver com o Capelão. Era um indivíduo afável, sem aquele ar que alguns padres têm de quem está sempre à espreita dos pecados do mundo. Um dia, em cavaqueira amena, perguntou-me qual a razão porque que eu não comparecia às missas, nunca me tinha visto nesses rituais que ele considerava essenciais para nos libertar a alma dos pesos que ela comporta, sobretudo quando o nosso ofício era o de matar e morrer, num estreito convívio com a morte. És o único, dos quatrocentos e tal homens que aqui estão, que não vai à missa, disse-me, olhando-me inquisidor. Que se passa? Respondi-lhe, também de forma cordata, que não ia porque não estava habituado, não fazia parte das minhas rotinas, não que tivesse alguma coisa contra o catolicismo, ou contra outra religião qualquer. Era uma questão de hábito e eu não fora habituado a frequentar esses espaços de liturgia. Ele sorriu e disse-me, Olha, se fores à Missa, dou-te esta imagem de Nossa Senhora de Fátima. Senti-me, de repente, como um miúdo a quem se dá um rebuçado para fazer um recado. Senhor padre, só vou à Missa se for obrigado. Passou-me a imagem para a mão e a conversa ficou por aí. Ainda hoje guardo essa imagem de Nossa Senhora, é uma imagem que me foi dada por um amigo, pela qual nada dei em troca. Tenho a minha Fé e estou vivo, com muitos lanhos por dentro é certo, mas vivo e desperto para as complexidades da vida: isso me basta.
7. AS INTERROGAÇÕES
Passados que foram os dias mais cruéis da guerra, a relativa paz que usufruíamos, a calma proporcionada por uma estabilidade maior, pelo aquartelamento, levou-nos a pensar a guerra em moldes diferentes. Aquele teatro de morte, o ver no outro, só porque era negro e miserável, o inimigo em potência não fazia sentido. Penso que nesta mudança de atitude, que mais tarde foi compreendida por alguns oficiais do quadro mais arejados mentalmente – não arrisco chamar-lhes “progressistas”, por que o não eram, de facto -, se ficou a dever aos milicianos, praças, sargentos e oficiais, que tinham outra preparação, um sentido não restrito da cartilha militar. Entendíamos que precisávamos conquistar as populações, tê-las do nosso lado, que não nos devíamos comportar como tropa de choque, de ocupação, agentes da terra queimada. Era fundamental, para nós, fazer passar a mensagem de que estávamos ali para ajudar, para colaborar com elas, para resolver alguns dos seus problemas e de que não precisavam de ter medo de nós, nem de andar fugidos na mata. Nós não éramos “terroristas”, éramos “amigos” e estávamos ali para os ajudar e proteger. Era uma filosofia diferente, contrária aos ditames iniciais da guerra que nos obrigava a disparar sobre tudo o que na mata se agitasse. Os milicianos introduziam, embora ainda de forma titubeante, alguma humanidade no cenário de guerra.
Começámos a abrir picadas, a construir kimbos, a apoiar as populações com assistência médica e comida. Era a psicossocial a dar, em Angola, os primeiros passos, num sentido que nos pareceu, nesses dias de brasa, possível e correcto. Isso não impediu, claro, que muitas populações se mantivessem na mata, desconfiadas e com medo – com medo de nós e dos chamados “turras”, evidentemente.
Nas tarefas de construção das picadas, acontecia normalmente, passarmos algum tempo fora do aquartelamento. Os camaradas iam-nos levar a comida, mas quando esta chegava já estava fria, para além da qualidade que deixava muito a desejar. Por isso, comíamos pouco e mal. Deixávamos os caldeiros com as sobras da comida na picada e quando regressávamos no outro dia encontráva-mo-los vazios. Era um sinal de que havia muita gente na mata fugida e faminta.
Essa presença das sombras esquivas era também detectada por alguns sinais que eram deixados, até pela guerrilha, para que soubéssemos que as coisas não estavam apaziguadas, que a luta continuava e que a guerrilha estava atenta e não vencida. Um desses sinais eram deixados na picada onde trabalhávamos: uns paus colocados no centro da picada com papéis onde nos informavam que nós, a engenharia, “podíamos continuar as nossas tarefas sem medo dos ataques”, porque estávamos a construir o “futuro de Angola”. Este pragmatismo, estava pejado de um cínico humor mórbido mas era perfeitamente entendível naquele tempo e naquele espaço.
Outros episódios, quase marginais à guerra mas que eram consequência do conflito, iam tornando cada dia mais duro e agreste, do ponto de vista moral, a nossa presença ali. Um dia, quatro velhos, que andavam fugidos na mata, vieram-se entregar ao nosso pelotão. Normalmente era eu que os recebia primeiro, dado que ia sempre à frente com a máquina enquanto os meus camaradas, que me faziam protecção, seguiam na retaguarda. Nesse dia, um camarada nosso, completamente passado, alucinado pelo calor, pela fome, pelos mosquitos, ao avistar aquele grupo, quatro velhos, começou a disparar, a disparar desvairado, os corpos a ficarem trespassados de balas de fúria, a raiva irracional a carregar no gatilho, caídos na picada, ali à minha frente e eu sem saber o que fazer, impotente perante o sangue, os corpos prostrados. Da mata surgiu uma criança aos gritos, a dor estampada no rosto, a abraçar-se à mulher caída na picada, a agitar aquele corpo, a tentar perceber. O meu camarada louco, possesso de todos os demónios que um homem pode albergar dentro de si – e como, só em situações extremas, o sabemos – retirou o sabre da espingarda e trespassou com ele o corpo da criança, apagando, desse corpo espantado, os gritos e as lágrimas. Para sempre. Revolviam-se-me as entranhas e estivesse quase a pegar na arma e a fazer o mesmo ao meu desgraçado camarada.
A guerra conduz-nos ao mais irracional que em nós existe, expõe o primitivo animal que em nós subjaz.
Essa situação contribuiu, conjuntamente com todas as outras, para a revolta que em mim ia crescendo, para o acentuar das dores intimas, para a sensação de viver um pesadelo medonho, permanentemente no centro do absurdo. Comecei a perceber que a guerra não fazia sentido, que nos tinham colocado numa armadilha para nos desumanizarmos até nos tornarmos numa coisa sem alma, meros autómatos ao serviço dos objectivos do poder.
Os meus colegas não se interrogavam, viviam esses dias como se nada se tivesse passado, como se vivermos permanentemente o absurdo fosse o mais natural das nossas vidas, dos nossos vinte anos a ficarem marcados a fogo e sangue – e cadáveres, centenas de cadáveres espalhados nos esconsos da memória, envenenando-me os dias, sobressaltando-me as noites.
O horror desses dias tinha de parar. Era insuportável e suicida, mesmo para um regime ditatorial como o nosso, continuarmos nessa política de terra queimada, de destruição das sombras. Era necessário, pensámos, acabar com a matança de populações vulneráveis e indefesas. Foi a partir daí que os comandos começaram a utilizar a chamada psicossocial, ou seja, uma tentativa inteligente e humanizada de integrar as populações e de as manter do nosso lado. Começámos a construir kimbos junto dos aquartelamentos, a dar-lhes assistência médica, a instruí-los na melhor forma de amanho das lavras, a criar um género de milícias a que chamámos GE (Grupos Especiais) no sentido de proverem à sua auto-defesa. Criávamos assim, as bases para o apaziguamento e para a Paz.
Eu próprio participei, com entusiasmo nessa nova etapa, dessa era nova que se abria nas relações do nosso Exército com as populações autóctones. Inventei um módulo para a fabricação de tijolos, módulo que lhes permitiu poderem construir as habitações de forma mais sólida e duradoura. Foi um êxito esse invento. Ensinámos, igualmente, a construir os telhados sem o capim habitual mas utilizando um género de telha portuguesa, as divisões das casas, etc. Este era, quanto a mim, o rumo certo para deixarmos a nossa marca civilizacional em Angola. Mas durou pouco esta euforia, esta nova estratégia iniciada por pressão, sobretudo, das tropas milicianas. Os altos quadros militares cedo se aperceberam que, a continuar-se essa via, a guerra terminaria em breve, que o novo “maná” que a guerra representava estaria próximo de se extinguir ou de deixar de ter significado bélico preponderante por forma a justificar a nossa presença em massa, no terreno. Era, de novo, preciso acicatar o ódio, perpetuar a revolta, esticar a corda até onde fosse possível. A continuação da guerra, significava para muita gente, dinheiro e poder. A guerra durou, como sabemos, mais dez anos.
No resto, a vida continuava, com as mesmas rotinas, os mesmos sobressaltos e a mesma ignorância do que se passava fora do perímetro do aquartelamento. Jornais não havia, a rádio era só a Emissora Nacional. Por vezes, e clandestinamente, ouvíamos a Rádio Moscovo, ou a Rádio Portugal Livre, de Argel. Normalmente as palavras de ordem aí difundidas eram incentivos à deserção e à revolta, despertando-nos para a injustiça que aquela guerra representava, tanto para nós como para os povos que lutavam pela independência.
Trinta meses depois de permanecer em zona operacional regressei à minha Unidade, em Luanda. Quando me apresentei, o meu comandante começou a olhar para mim e perguntou-me quem eu era, sou fulano de tal e pertenço a esta Unidade, meu comandante: o homem nunca me tinha visto.
A guerra foi uma experiência única, mesmo nas situações mais extremas e negativas. Mesmo quando vês os teus companheiros caírem ao teu lado, ou deles sabes o destino já depois dos pesadelos terem acabado, como foi o caso de um camarada que apanhou uma doença venérea (que era comum apanhar-se, dado não termos muitos cuidados nas “visitas” às prostitutas), que não soube cuidar-se e quando deu por isso já era tarde, já a doença tinha avançado irreversível. Soube que tinha embarcado para a Metrópole juntamente com os outros, mas nunca chegou a desembarcar na Rocha de Conde de Óbidos. Perde-se no mar como outros se perderam no verde coração das matas angolanas.
8. Depois da guerra fiquei em Angola
Já os meus camaradas iam em alto mar quando eu passei à disponibilidade. Tinha decidido ficar em Angola. Tinha criado raízes naquele chão, tinha, apesar das vicissitudes porque passara, ganho amizade por aquele espaço, por aquela gente.
Casei e por lá fiquei, um pouco aos tombos, sentindo ainda na pele a dureza dos anos de guerra. A minha companheira era, à época, empregada de um alto responsável do governo da Província e este prometeu-me emprego, um bom emprego, mas exigindo, como contrapartida, que eu abandonasse as posições críticas que tinha em relação à nossa presença em Angola. Recusei, naturalmente. Vi-me, por isso, compelido a sair de casa, chegando ao extremo de deixar um bilhete à minha mulher onde lhe explicava que me via obrigado a procurar emprego noutras paragens e a só regressar quando o encontrasse.
Fui para o sul de Angola. Aí encontrei um ex-comandante que estava a tomar conta de um organismo do Estado, que me incentivou a ficar em Angola. Estive na zona de Nova Lisboa, na Cela, a trabalhar e aí pude, finalmente, estabelecer-me, desenvolver a minha actividade profissional e criar raízes suficientes para fortalecer os laços familiares. Em Cela nasceu a minha filha. Aí estive mais de dois anos, até que comecei a receber cartas de casa, o meu pai a lamentar-se que há cinco anos que não me via, não conhecia a nora, não conhecia a neta. Aquilo começou a fazer caminho, também eu tinha saudades de casa, de modo que assim que pude juntar uns cobres, regressei a Portugal no velho Quanza.
De regresso a Portugal, arranjei trabalho como operador de máquinas e também como mecânico de máquinas pesadas, em Lisboa.
Em 1969, regresso a Angola. Fui, na altura, trabalhar para a Diamang, que era uma grande empresa, estatal, de diamantes. Fiz dois contratos mas no final comecei a sentir alguns sintomas, os sinais já da doença que a guerra me tinha deixado a nível psicológico – durante anos não me apercebi desses sintomas, mas eles estavam lá e começaram a aparecer, a destruir-me por dentro. As feridas invisíveis começavam a abrir.
Apesar de tudo, Angola será sempre a minha segunda pátria- em África vivi os melhores anos da minha vida, os mais fecundos, os que me obrigaram a crescer como homem e como ser humano; a ter plena consciência do tempo que me coube viver,
NOTAS FINAIS
Regressei a Angola, em 1988 e 1992, como cooperante dos Ministérios da Indústria e Agricultura.
Angola ficaria, para sempre, moldada à minha pele, como uma segunda pátria.
Aquando desses regressos esporádicos, não pude deixar de me sentir profundamente magoado com o que via. Luanda era (penso que ainda é) uma cidade de contrastes chocantes, porventura piores do que aqueles que se verificavam no tempo colonial: a miséria anda visível e estropiada pelas ruas, o cheiro que vem dos musseques inunda tudo, as doenças e a fome alastram, enquanto na Ilha os restaurantes de luxo crescem como cogumelos e uma nova burguesia possidónia e insensível vai tomando de assalto as margens de um poder que se perde nas suas próprias contradições.
Os meninos da guerra, órfãos de tudo, deambulam por uma cidade em busca de auxílio e de horizontes – horizontes que parecem cada dia mais fechados e sem esperança. E há, pelas ruas, montes de mestiços, homens e mulheres de olhos azuis e pele de ébano que dos progenitores apenas conheceram a mãe. Também isso a guerra fez, essa identidade imaculada, essa metade do sangue que ficou por saber de onde lhes veio; milhares de homens e mulheres perdidos pelas imensas terras angolanas que nunca saberão que homens os geraram em noites de sobressaltos e solidões partilhadas na esteira de uma qualquer cubata perdida nas matas de Angola. As nossas culpas de guerra, as culpas tidas individualmente, se aos vinte anos se tem essa consciência, para mais quando se fazia uma guerra a contra a vontade, foi a de ter deixado muito órfão de pai, muito filho que nunca conhecerá a outra metade. Mas isso, são as consequências laterais de uma guerra. Quando os povos se misturam, em situações limite, os resultados são quase sempre esses: também nas pessoas ficam esses evidentes sinais de uma tragédia vivida em comum.
Noite acabou sem ser preciso
Sair dos sonhos de outras camas
Para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas
Estás são e salvo e logo
“viver é bom”, proclamas
Eu nesta, não fiquei bem
Estou a olhar para o lado
Tinham-me dito: eh soldado!
É dia de incendiar aldeias
Baralha e volta a dar
O que tiveres de ideias
E tudo o que arder, queimar!
No fogo assim te estreias.
Nesta outra foto, não vou
Dar descanso aos teus olhos
Não se distinguem os detalhes
Mas nota o meu olhar, cintila
Atrás da cor do sangue
Vou seguindo em fila
E atrás da cor do sangue
Soldado não vacila
O meu baptismo de fogo
Não se vê nestas fotos
Tudo tremeu e os terramotos
Costumam desfocar as formas
Matamos, chacinamos
Violamos, oh, mas
Será que não violamos
As ordens e as normas?
Álbum de fotos fechado
Volto a ser quem não era
Como a memória, a primavera
Rebenta em flores impensadas
Num livro as amassamos
Logo após cortadas
Já foi há muitos anos
E ainda as mãos geladas
Chega-te a mim
Mais perto da lareira
Vou-te contar
A história verdadeira
Quando a recordo
Sei que quase logo acordo
A morte dorme parada
Nesta morada.
Letra de Sérgio Godinho – canção do Álbum “Tinta Permanente”
IR À GUERRA E DEPOIS
A geração de portugueses nascidos durante a 2º. Guerra Mundial e que atravessou os piores anos da ditadura (os racionamentos, a fome, as prisões da Pide), viveu um dos períodos mais fecundos de criação de uma consciência cívica e política do nosso século XX. Apesar de todas as vicissitudes porque passou, essa geração viveu por dentro experiências singulares e incomuns de transformação política, civilizacional e cultural que lhe permitiram crescer e entender melhor os mecanismos que fazem andar o mundo - ou, pelo menos, era suposto que assim acontecesse.
Essa geração, que hoje rondará os sessenta e cinco anos de idade (nascida nos anos 1930), conviveu com a fome, com a intolerância mais irracional e rasteira, que não se estabelecia apenas a nível do Poder, mas que se institucionatizara tentacularmente passando da família, à Escola, à oficina, à fábrica, até às forças da repressão numa espécie de círculo opressor que impedia a livre escolha, mesmo que singular, como ir ao cinema, ao teatro, ler um livro, um jornal, escolher uma gravata, um fato, decidir sobre os desejos: ou seja, o pior do fascismo luso não incidiu, como nos seus modelos italiano e germânico, na violência descriminada sobre os dissidentes, grupos sociais ou opositores, em campos de morte (apesar do Tarrafal), mas penetrou mais fundo e mais duradouramente nos hábitos, nos costumes, nas formas de organização social.
O fascismo luso foi mais pernicioso que os demais modelos, porque incidiu sobre a cultura, penetrou, indelével mas eficazmente, a alma de um povo, enquanto os outros foram fenómenos efémeros e, felizmente, vencidos pelas correntes mais fortes e maioritárias do humanismo e da Liberdade.
Os sinais, essas marcas identitárias de quase cinquenta anos de imobilismo social, inculcados pelo Estado Novo, ainda hoje persistem tolhedores da modernidade e impeditivos do nosso progresso político, cultural e económico. O que o fascismo impôs à sociedade portuguesa, a nível dos imaginários colectivos, foi de tal forma obsessivo e absorvido pelo comum da população, que mesmo depois de Abril os poderes, tidos por democráticos, utilizam, à ultrance, aparentemente sem grandes constrangimentos ideológicos ou morais, as três vertentes fundadoras do obscurantismo salazarista nas suas derivas conservadoras: a Fé, o Fado e o Futebol - hoje, difundidas através de novos e mais poderosos meios de persuasão e capacidade de penetração nas mentalidades. A estas três vertentes, poderemos ainda acrescentar, a ficção novelesca de baixa extracção, os big brothers, a literatura ligth e uma música tida por popular, rasteira e boçal, que transforma o nacional-cançonetismo em música de qualidade.
Mas o salazarismo-caetanismo não se caracterizou apenas pela sua incapacidade de compreender a dinâmica das sociedades suas contemporâneas, de adaptar o país aos novos tempos do pós-guerra e de recorrer (como fez o franquismo, por exemplo) aos fundos do Plano Marshall para o desenvolvimento. Apostou no isolacionismo, na repressão e no atraso estrutural, para estabelecer o seu domínio e se perpetuar no poder, com o beneplácito hipócrita das democracias europeias e dos Estados Unidos. Este projecto, pensado e meticulosamente elaborado desde as anos 1930/40, começou a ser seriamente abalado pela perda da Índia (Goa, Damão e Diu), em finais dos anos cinquenta, quebrando o discurso hegemónico do Portugal uno e indivisível, e pela eclosão, a partir de 1961, das lutas de libertação nas colónias africanas.
A primeira e mais dolosa dessas frentes de luta, foi, sem dúvida, a de Angola, não só pelo significado económico e estratégico desse colónia, como pela dimensão e objectivos políticos da luta aí encenados pelas principais potências internacionais: a União Soviética, no apoio ao MPLA e os Estados Unidos (com a África do Sul do Apartheid) no explicito e tácito apoio à Unita de Jonas Savimbi. Sabe-se hoje, que a Unita funcionou, igualmente, em promíscuo conluio com facções ligadas ao poder colonial, usada como força de resistência à influência e atracção que a União Soviética então exercia sobre os jovens líderes africanos. Às lutas de libertação em Angola, seguiram-se Moçambique e Guiné, esta última mobilizando grandes esforços tácticos, operacionais e políticos, dada a sua posição estratégica particularmente sensível, a exiguidade territorial e o complexo tecido étnico e social em confronto. Foi a única das 3 colónias em que a guerra estava objectivamente perdida, tanto no plano político como militar, à data do levantamento que conduziu à revolução de Abril de 1974.
Os primeiros militares mobilizados para Angola, em 1961, tiveram a missão difícil e quase humanamente insuperável de ter de enfrentar uma guerra para a qual não estavam preparados técnica, militar e psicologicamente, em terreno hostil e perante um povo de que de todo desconheciam as mais básicas idiossincrasias, cultura, crenças e hábitos ancestrais. Tinham partido para Angola “em força”, obedecendo às ordens dos superiores hierárquicos e estes às determinações políticas de Salazar, sem que o poder da ditadura reflectisse sobre as condições, meios e logística próprios à intervenção que ordenava – é preciso salvar a face e manter a coerência de uma mitologia hegemónica do “espaço luso”.
Os resultados dessa ofensiva inicial das nossas tropas, dessa travessia sem bússola pela mata angolana, vai transcrita nas páginas deste livro de forma clara, surpreendente e, por vezes, chocante tal o realismo do descrito e a verdade pungente do relato que nos é transmitido na primeira pessoa. Este “As Feridas Interiores”, de Manangano, é, na sua crueza essencial, um documento único para a compreensão e conhecimento desses tempos de brasa e, sobretudo, dos sacrifícios impostos a uma geração desapossada dos mais elementares direitos, forçada, por isso, ( mesmo tendo em conta a propaganda do regime) a fazer uma guerra que não entendia e cujos contornos políticos de todo lhe escapavam. Este desabafo em forma de livro, é o grito de alguém que foi à guerra, que viu matar e morrer e que mais de quarenta anos volvidos ainda não conseguiu esquecer o que viu, porque a memória é uma ferida em sangue, o “ veneno” que “envenena” de que falava o Fernando Assis Pacheco. Essas feridas de dentro, as mais perenes, as que se não vêem mas vão corroendo os alicerces do ser, as feridas que devagar nos matam, por isso as mais dolorosas, as mais insuportáveis, estão expostas neste livro de forma corajosa e frontal. O autor assume a denúncia de um período em que o desvario da nossa intervenção militar em África se propunha exemplar e por isso exacerbava esse poder ao ponto de se confundir nos métodos com “terrorismo de Estado”, em tudo idênticos com o dos “turras” cuja propalada “barbárie” pretendia, na retórica e na propaganda, combater.
Não se pretendendo escritor, mas sentindo a urgência de passar esse testemunho geracional, essa experiência singular, Manangano acedeu a deixar-se “entrevistar” por mim, a contar-me a sua “ida à guerra” e os motivos que ainda hoje, volvidas quatro décadas e muito mundo depois, o fazem dependente de psiquiatras e terapeutas do foro psicológico, tornado, pelas circunstâncias excepcionais dessa experiência de guerra, num dos inúmeros ex-militares vítimas de stress pós-traumático. Desse relato raro e doloroso extraímos a essência e tentámos, através do discurso directo e intimista, que o mesmo fosse lido como uma narrativa, uma para-ficção, de modo a que o leitor pudesse estabelecer uma relação distanciadora com o texto, propícia à racionalização dos factos e à sua não envolvência emocional a que o horror do narrado, sem o recurso às técnicas da escrita literária, poderia conduzir o leitor, condicionando-o criticamente.
A nossa literatura de guerra, aquela que relata de forma ficcionada a trajectória de várias gerações que durante 13 anos percorreram os cenários das três frentes da guerra colonial, conta já com uma mão cheia de bons textos, alguns dos quais foram estreia dos seus autores nas letras nacionais. Essa experiência de guerra, se deixou marcas fundas em muitos dos seus protagonistas, contribuiu, a nível da nossa literatura contemporânea, para a mudança dos paradigmas imaginísticos e estéticos que no início dos anos 1960, e depois da dinâmica criadora do neo-realismo, pareciam tê-la transformado numa literatura auto-contemplativa, no dizer de Óscar Lopes, e encurralada nos labirintos circulares das suas propostas. Uma poesia de combate, claramente antifascista, com Manuel Alegre como marco fundamental, os baladeiros (com José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Luís Cília) juntamente com os primeiros textos sobre o conflito colonial escritos por Álvaro Guerra, Fernando Assis Pacheco, Manuel Alegre e, depois, António Lobo Antunes, João de Melo, Álamo de Oliveira, Carlos Vale Ferraz, vieram contribuir para o abrir da nossa cultura a uma outra realidade e para a assunção de uma intervenção cívica, através dos mecanismos comunicacionais, mais pujante e politicamente comprometida. A ficção usava a história como elemento fulcral e transformava o real vivido em objecto de rara qualidade literária.
Este livro de Manangano, aparece, neste contexto, como um corpo estranho porque não se pretendendo objecto literário, mas tão-só testemunho de alguém que foi à guerra e a quis contar e para isso utilizou alguns dos mecanismos que só aparentemente serão pertença da literatura. O testemunho que agora se dá à estampa, é um documento que considero único no panorama da crónica guerra, mesmo tendo em conta a quantidade (cerca de 200 títulos até hoje publicados) e a qualidade dos escritos que o conflito colonial suscitou aos seus autores. Este testemunho, que diz o, até hoje, indizível, o que nos corredores se sussurrava e sabia mas que, pelo horror das situações descritas, não houve coragem de transcrever e de denunciar publicamente.
Embora persistam, na sociedade portuguesa, muitas feridas do período colonial, este “As Feridas Invisíveis” é um livro útil, necessário e urgente. Sem enfrentarmos, de forma clara, corajosa e desassombrada, os nossos fantasmas colectivos, dificilmente conseguiremos ultrapassar os constrangimentos que os últimos anos do império geraram. A verdade desse período, os erros e omissões, terão de ser assumidos pelos seus protagonistas, por forma a podermos, definitivamente, nós e os povos que connosco percorreram os mesmos armadilhados destinos por mais de quatro séculos, virar a página. Este livro faz parte desse propósito.
Domingos Lobo
1. A 2ª. GUERRA MUNDIAL
Nasci em 1940, em Portugal. Em plena 2ª. Guerra Mundial, portanto. Aquando do armistício, tinha eu seis anos. Claro que me lembro dos tempos difíceis da guerra, das senhas de racionamento, nomeadamente para o pão, que constituía, na altura, a base da nossa dieta. Minha mãe mandava-me a pé para Salvaterra, para que eu conseguisse arranjar uma senha. Teria os meus cinco, seis anos. Depois de muito tempo nas filas, lá conseguia um determinado alimento, as coisas básicas, pão, café, açúcar, sabão, outras coisas. Recordo-me que os mais velhos, valendo-se da minha inocência – não acontecia só comigo, também acontecia com outros miúdos – roubavam-nos as senhas e, com elas, conseguiam mais alimentos. Quando a minha mãe, mais tarde, chegava para me ajudar a levar o avio, encontrava-me de mãos vazias e a chorar, “mãe, roubaram-me as senhas”. Os meus seis anos trágicos, com uma guerra lá longe de que só sabia pelas mãos e o estômago vazios.
Também, nesse tempo, os rapazes da minha geração andavam descalços e, até, para a Escola íamos (apesar de haver uma lei que o proibia) sem nada nos pés, quer de Inverno quer de Verão. Sei que os meus pais foram ameaçados, mais do que uma vez, pelos guardas, de pagarem multa por eu andar descalço, mas não havia nada a fazer: o dinheiro dava à justa para a comida, não sobrava nada para luxos.
Acabada a guerra, em 1946, as coisas começaram gradualmente a ser mais fáceis. Continuei a ir à escola, em Benavente, e aí acabei a 4ª. Classe.
Durante todo o tempo que andei a estudar em Benavente, sentia que estava afastado da escola, não porque eu fosse falho de inteligência, mas, sobretudo, porque eu me sentia diferente das outras crianças. Depois, os professores tinham determinadas preferências, havia alunos e alunos, existia uma nítida separação e eu não me sentia bem nesse ambiente, rebelava-me porque sentia que os professores se dedicavam mais àqueles que tinham posses e que poderiam continuar os estudos, e relegavam para segundo plano os de origem mais humilde que, nas condições sociais da época, dificilmente permaneceriam na escola depois de concluído o período obrigatório. Isso, para além de me entristecer, revoltava-me. Comecei, assim, desde muito novo, a perceber as diferenças sociais, a estratificação das classes e os estigmas que desde criança nos eram impostos por um regime segregacionista, imoral e profundamente injusto.
Nessa altura comecei a sentir algumas exigências por parte dos meus pais, porque os nossos rendimentos eram muito baixos e havia necessidade de mais um braço que pudesse equilibrar o orçamento. Os trabalhos no campo eram difíceis, os meus pais eram assalariados rurais e, nesse tempo, os campos ficavam inundados no Inverno e não permitiam que houvesse trabalho durante largos períodos. As dividas acumulavam-se, ficava-se a dever nas lojas e só se pagava no fim do Verão, depois das safras, para se retornar depois ao mesmo ciclo de fome e de miséria. Para agravar as coisas, por volta dos meus dez anos tive uma doença pulmonar que me deixou numa situação complicada, os meus pais não tinham dinheiro para me mandar curar, eu necessitava de uma alimentação mais regrada do que a que era comum lá em casa – e nas casas de grande parte da população rural. Com bastante esforço e cumplicidade entre todos os membros da família (havia, nesse tempo, um grande espírito de entreajuda, mesmo entre vizinhos), lá consegui ultrapassar a situação. Os meus pais tinham uns pedaços de terra, que, embora lhes não pertencessem, era terra alugada, que granjeavam e daí tiravam algum sustento para a sobrevivência do dia a dia.
Uma vez, lembro-me que a minha mãe, teria eu os meus dez, onze anos, me disse para eu ir ao padeiro, buscar o pão que estava encomendado. Os meus pais tinham ido para o campo e eu tinha ficado encarregue daquela função. Cheguei à padeira, disse-lhe, dona Rita, venho buscar o pão que a minha mãe lhe encomendou. Ela olhou para mim, com um ar pesaroso, e disse-me, Olha filho, vai para casa porque não há pão enquanto os teus pais não vierem cá pagar o que me devem. Fui para casa, muito triste e a chorar, claro. A minha sensibilidade levava-me a pensar que a situação era muito grave e, sobretudo, não sabia como havia de dar a notícia a minha mãe. Quando todos chegaram do trabalho, os meus pais, os meus irmãos, perguntaram-me, Então, onde está o pão, eu, contristado, respondi, Pão, não há, porque a senhora disse-me que enquanto não se pagar a conta que lá está não há mais pão para ninguém. A minha mãe, percebendo a minha atrapalhação, o constrangimento que tudo aquilo me causava, pôs-me a mão na cabeça e disse, Filho, pronto, não é preciso chorares, nós vamos resolver o problema. E assim foi: fomos a casa de uma tia minha, pessoas que viviam um pouco melhor que nós, pedimo-lhes algum dinheiro emprestado e fomos pagar parte da dívida à padeira para que pudéssemos levantar o pão para esse dia.
Este quadro de miséria absoluta, de ver que os meus pais e os meus irmãos se esforçavam a trabalhar sem que esse esforço melhorasse as nossas vidas, foi criando lastro, desenvolvendo dentro de mim uma grande revolta e um apurado sentido das injustiças do mundo. Essa revolta, penso, havia de me marcar para a vida toda. Comecei a entender o mundo em que vivia muito cedo, aos dez anos, e isso deixa marcas indeléveis que nunca mais se apagam. Ao mesmo tempo, os horizontes fechavam-se, sabia que as minha oportunidades eram quase nulas, que o meu destino seria seguir o caminho de meus pais e dos meus irmãos, e ir para o campo. E assim foi. Estive a trabalhar no campo até perto dos dezanove anos. Claro, que nessa altura sentia com muito mais acuidade as dificuldades familiares e, então, decidi fugir de casa. Bem, fugir de casa não é bem o termo: não saí de casa zangado, como era hábito nesse tempo, mas por sentir que a minha vida a continuar assim, não teria futuro. Pensava, igualmente, que dessa forma poderia ajudar os meus pais. Fugi, aos dezanove anos, para Lisboa, que era o espaço que me estava mais próximo e onde me seria mais fácil conseguir trabalho. Fui então trabalhar para uma firma de construção civil. Comecei como manobrador de máquinas, ou seja, consegui ultrapassar as tarefas de quem se inicia na profissão, ajudante de pedreiro, pedreiro, etc., e fui logo para manobrador de máquinas o que me permitiu ter um ordenado um pouco superior. Estive nesse trabalho até ir para a tropa. Aos vinte, vinte e um anos, fui para o quartel de Beja, onde permaneci alguns meses, depois fui para o aquartelamento de Elvas, em Lanceiros 1, e fui para uma especialidade de condutor de máquinas pesadas, tendo em conta a minha experiência como manobrador de rectroescavadoras. Claro que eu, na altura, ainda não tinha carta de condução, e foi em Lanceiros 1 que tive as primeiras lições. Aí jurei bandeira e fui depois transferido para a Escola Prática de Engenharia, onde me especializei naquilo que mais gostava. Fiquei na Escola Prática até à data da mobilização.
2. Ir à Guerra
Não estava, confesso, à espera de ser mobilizado, tinha já vinte e dois anos, pensava que me safava, mas no último momento lá chegou a malfadada ordem. Para quem se preparava para fazer 20, 26 meses de tropa, foi realmente um balde de água fria. O meu azar foi a guerra ter começado, estávamos em 1961 e não havia fuga possível. “Para Angola, e em força”, era a ordem salazarista. Fui promovido a 1º. Cabo e embarquei para Angola.
Devo dizer que o meu tempo de tropa, constituiu, talvez, o tempo mais importante do meu crescimento, como homem e como ser humano. Não só porque aprendi muita coisa, coisas que me serviram depois para a minha vida profissional. O importante na vida das pessoas é fazermos aquilo de que gostamos, e eu gostava de fazer o que fazia, apesar dos constrangimentos da guerra e dos horrores a que assisti. Mesmo isso, a guerra e seus naturais terrores, todas as guerras são inumanas e cruéis e a guerra de Angola não foi excepção, obrigam-nos a crescer, a olharmos o mundo de forma diferente e a regressarmos aos resquícios da nossa humanidade essencial. E foi isso, essa essência do ser, que a guerra me deu, para além da capacidade de olhar os homens de forma muito mais realista e sem as carapaças, sem a hipocrisia com que nos vestimos no nosso quotidiano: na guerra estamos sós, ao espelho, e nus.
Foi para Angola, no segundo contingente, e fui integrado num destacamento de Engenharia, integrado na Companhia de Comando e Serviços. Quando cheguei a Luanda, fui para o Quartel de Engenharia mas, como não havia vagas dado que estavam a chegar muitos contingentes, fomos instalados nos subterrâneos da Emissora Católica de Angola. Claro que, dadas as condições que eram muito precárias, ficamos muito mal instalados. Mas foi por pouco tempo; entretanto as coisas organizaram-se e fomos para o Quartel de Engenharia, que ficava mesmo em frente da Emissora Católica. Fui então integrado numa Companhia que ia realizar uma grande operação no Norte. Fiquei encarregue de manobrar uma máquina de terraplanagem que tinha como função abrir caminhos na mata para que a Operação fosse possível. Estamos a falar de zonas de floresta densa, quase tropical onde a progressão era muito difícil e os caminhos inexistentes. Por isso, eu e a minha máquina éramos considerados, pelos meus camaradas, uma espécie de deuses ex-máquina
3. Os horrores da Guerra. A Morte
Iniciámos a operação a partir do Caxito e daí seguimos em direcção a Ucua, na região dos Dembos. Estas zonas são belíssimas, de uma beleza quase primitiva, de uma vegetação luxuriante e agreste. Quando chegámos a Úcua, o cenário era de destruição e morte, de um horror quase indescritível: cadáveres espalhados pela mata, mutilados, estripados, um horror dantesco que de repente se apresentava perante os nossos olhos, olhos ainda habituados à planura das lezírias e à suavidade das nossas dores mansas. Aquilo era a imagem dos pesadelos, dos nossos terrores mais íntimos, e estavam ali, à nossa frente, corpos e corpos nus, brancos e pretos misturados, violentados pelas balas, pelas bombas, decapitados pelas catanas, pelos engenhos de morte. Era um vasto campo de morte e putrefacção que empestava o ar e nos calava de espanto e estupefacção. O estupor absoluto, a guerra em toda a sua crueldade e plenitude. E eu impreparado para aquilo, eu apenas sabedor de máquinas e da forma de desbravar caminhos, estupefacto perante a realidade mais crua, o mais absoluto terror. Só queria sair dali, fugir, embrenhar-me na mata para não ver. E comecei a pensar no absurdo de tudo aquilo, o que é que levava os homens a matarem-se, a destruírem-se com aquela crueldade, interrogava-me e interrogava os meus camaradas. O que é que estamos aqui a fazer, foi para isto que viemos para África, para nos matarmos? Aquilo não era justo, não existia qualquer justificação para o absurdo. Quem ganha com isto, quem está na sombra, que não conhecemos, de quem nunca ouvimos falar e que estão a beneficiar com este morticínio. Que obscuros interesses se escondiam por detrás da morte. Os chamados “turras” tinham uma justificação, política e ideológica: estavam a encetar uma guerra de libertação, queriam ser, finalmente um povo com direito a ser dono do seu próprio destino, mas nós, para além dessa vacuidade dos discursos do Salazar “da defesa das províncias ultramarinas”, o que é que nos mobilizava, porque nos mandavam matar e morrer?
Claro que eu na altura não tinha qualquer preparação política, não sabia se era de esquerda ou de direita, mas sabia pensar, que é um vício terrível. Penso que era uma questão temperamental, ainda irracional, herdada do meu pai, que olhava a realidade com a mesma revolta, o mesmo sentido crítico. Recordo-me, apenas, de ter algumas reuniões clandestinas no Pinhal dos Palhas, dos panfletos mobilizando para as greves nos campos pela jornada de oito horas, por melhores salários e pelo fim das praças de jorna. Lembro-me das cargas da GNR sobre os trabalhadores a mando do patronato. Mas eu era muito jovem e essas coisas passavam-me um pouco ao lado. Mas sentia, no fundo sabia que a vida que nos obrigavam a viver não estava certa, que era preciso mudar as coisas – isso eu sabia. Depois, em Lisboa, na tal empresa, contactei com alguns camaradas que já tinham alguma consciência de esquerda, que eram críticos em relação à situação, e isso levou-me também a repensar as coisas. Lembro-me que uma vez me convidaram para uma reunião clandestina nos arredores de Alenquer – eu, na altura, nem sabia onde ficava Alenquer. Fui a essa reunião através de um código secreto, senha e contra-senha, uma forma que o Partido tinha, na clandestinidade, para impedir que a polícia política (a PIDE) se infiltrasse. Quando cheguei a Angola e perante aquelas cenas de morte, comecei a ter a certeza de que aquilo que pensava tinha razão de ser, que eu estava certo.
Depois de Ucua, partimos para o Pir. Eu, na altura, ia integrado num Batalhão de Infantaria. Quando chegámos ao Pir íamos arrasados, sem forças. Andávamos a ração de combate, a água imprópria, a desbravar caminhos – éramos quase pioneiros numa região inóspita. Estacionamos no Pir para recuperarmos as forças que não davam para mais. Era necessário recuperar material, que tinha sofrido grande desgaste, e voltarmos a ter mantimentos, que estavam a chegar ao fim. O abastecimento só podia ser feito por meios aéreos, de modo que eu e os meus camaradas, tivemos que abrir uma pista no Pir, através da mata, para que os aviões de abastecimento pudessem aterrar. Para cúmulo, a máquina avariou, nós não tínhamos forma de a reparar sem peças que tinham de vir de Luanda, de modo que o resto da pista foi aberta à custa de enxadas. O primeiro avião a aterrar nessa pista, era um avião particular, possivelmente donos da propriedade, dos cafezais, com seis ou sete passageiros, que traziam alguns víveres. Nessa altura estávamos quase sem nada para comer e a situação começava a ser trágica. Só que os víveres não eram para nós, para a tropa miúda, mas para os oficiais, para os senhores. Nós estávamos há já alguns meses, a ração de combate, a tripa curta. Mas a paparoca não era para nós. Os senhores, com o Comando, instalaram-se num varandim que por lá existia, e manducaram do bom e do melhor. Enchi-me de coragem, a fome é irracional, e dirigi-me ao local do banquete. O Major (ou Capitão, já não me recordo) olhou para mim com ar arrogante e perguntou-me o que é que eu queria dali. Respondi-lhe que nada, não quero nada, meu Major, só assistir ao repasto, ao vosso belo banquete. A criatura, espumando de raiva, começou a insultar-me, a humilhar-me. Tive, nesse momento, a certeza de que a nossa presença ali, naquele teatro de guerra, era apenas utilizada como “carne para canhão”, só para isso servia e para justificar mordomias, que nada significávamos, éramos meras marionetas a utilizar conforme o jogo. E estávamos ali, 300, 400 homens, com a fome a apertar e a olhar a afronta daquele grupelho a banquetear-se do bom e do melhor, e sem reagir. E nós, tínhamos armas, e jeeps, e força. Podíamos, se tivéssemos consciência política e colectiva, virado a afronta a nosso favor e, quem sabe, o destino da guerra. Claro, que essa situação só contribuiu para acentuar a revolta, não só a minha, penso, também a de um ou outro da minha Companhia eram capazes de sentir a mesma revolta. A fome, por vezes, também contribui para abrir as consciências.
Do Pir até Nambuangongo, começamos então a ver o que era a guerra, a guerra de guerrilha. Eu, limitado ao meu território da máquina, a abrir caminhos na mata, e os meus camaradas sujeitos todos aos ataques da guerrilha. Estávamos em pleno território da, então, UPA (União dos Povos de Angola). Fomos atacados várias vezes, à catanada, sobretudo. Lá ficaram alguns camaradas meus, incluindo o clarim, que foi morto com arma de fogo, pelo António Fernandes, um mestiço dissidente do nosso exército. O clarim tornava-se um alvo fácil porque era detectável pelo som. A nossa sorte foi a UPA, nessa altura, não estar armada, ou estar pouco, com armas convencionais, porque se estivesse muitos de nós teriam perecido nesse chão de África. Mesmo nós, ainda só tínhamos velhas mauzer’s, uma ou outra FBP, granadas de mão, bazookas e pouco mais. De modo que a luta era quase corpo a corpo, embora desigual, porque nós, apesar de tudo, possuíamos armas. Valia-lhes, claro, o factor surpresa porque eles conheciam bem o terreno, movimentavam-se nele sem quase serem pressentidos.
Os nossos mortos foram lá enterrados, não sei se mais tarde os trouxeram para Portugal, mas na altura tivemos que os deixar lá, não havia outra forma.
A guerra tinha de continuar. Prosseguimos a caminhada e chegámos ao Alto Danje. Aí deparámos com uma ponte que estava destruída, - tinha sido destruída para nos impedir a progressão, naturalmente. Aí ficámos mais uns dias, dias terríveis de luta contra os elementos, contra a guerrilha e, sobretudo, contra as nossas capacidades físicas que estavam no fio. Sem logística, sem nenhuma forma de sermos abastecidos, com a fome a apertar, tivemos de contornar o rio e fazer a progressão por outro lado, obrigando-nos a desvios de quilómetros através da mata.
Ao passarmos o Alto Danje, uma das Companhias do meu Batalhão, desviou-se para a zona de Vista Alegre e Aldeia Viçosa. O resto do Batalhão seguiu na direcção do Alto do Luíca. Aí foi tremendo. A progressão era difícil. Tínhamos uma subida de cerca de oito quilómetros através de mata densa, com obstáculos de todo o género, desde ataques da guerrilha, cursos de água, vegetação cerrada. Quando conseguimos, finalmente, encontrar um pontão e passá-lo, lemos um papel que estava preso num embondeiro, que dizia “todo o branco que conseguir passar, vai morrer”. E isso aconteceu, tivemos mais 4 baixas.
Levámos 4 dias a fazer a subida, o que dá uma ideia das tremendas dificuldades. Chegados ao Alto do Luíca, voltámos a descansar: as pernas já não obedeciam, já não sentíamos o corpo, já nada em nós reagia. O capitão ainda mandou tocar a sentido, (a absurda mania das normas castrenses) mas qual sentido qual nada, nem o clarim conseguiu dar as notas. Nestas deploráveis condições, conseguimos descansar um dia e uma noite. Na manhã seguinte, o maldito clarim, já refeito, lá tocou o despertar, a reunir, e encetámos a marcha. Connosco seguiam alguns fazendeiros brancos, que nos serviam de guias. Eram conhecedores do terreno e sabiam das ciladas possíveis. Alertaram-nos para o perigo que podia surgir, mais à frente, na sanzala do Mocondo. Nessa aldeia, estariam, segundo eles, cerca de 2000 guerrilheiros. Havia o perigo de um ataque, de luta corpo a corpo. Na aldeia, segundo as informações que possuíamos, toda a população, que seria afecta à UPA, estaria preparada para nos atacar. Era aí, na sanzala do Mocondo, que eles procuravam cumprir a ameaça de “nos matar a todos”. E o recontro deu-se, inevitável. Luta corpo a corpo, palhota a palhota, no meio dum fogo dos infernos. Tivemos 4 baixas. Todos ficaram enterrados naquele chão. Conto como foi, e ao contá-lo, tantos anos depois, ainda sinto o revolver das entranhas.
Quando nos preparávamos para sair do Alto Luíca, presenciei uma conversa via-rádio entre o nosso capitão e o comandante de Sector. O nosso capitão informava que não devíamos prosseguir para além do Alto do Luíca porque essa era a informação que os nossos guias nos transmitiam. Mas o comandante de Sector deu ordens para que avançássemos custasse o que custasse, nem que esse avanço representasse a vida de todos nós. De nada valeu as explicações do meu comandante, as dúvidas e os alertas dos guias. Era preciso avançar, Quem manda sou eu, dizia o comandante de Sector, Mas como, meu comandante, se não temos apoio aéreo, estamos sós, Não te preocupes, ripostava o comandante, imperial e determinado, eu trato disso: vou mandar para aí um bombardeiro carregado de napalm. Meu comandante, mas isso não é possível, a Convenção de Genebra impede-nos de utilizar napalm, Isso é à minha responsabilidade, respondia o comandante de Sector, pondo termo à conversa. Passadas umas horas, assistimos ao fogo dos infernos a incendiar os céus da aldeia do Mocondo e a dizimar toda a população indefesa, incrédula com o que lhe acontecia, os animais, a vegetação. Lembro-me sempre desse pesadelo, quando vejo o Apocalipse Now, do Coppola. Só que nós fizemos isso antes dos americanos, embora o tenhamos feito com a mesma desumanidade e igual impunidade. Claro que era impossível contabilizar os mortos depois daquele inferno, mas pelas minhas contas morreram na aldeia mais de mil pessoas, entre mulheres, velhos, crianças e guerrilheiros, naturalmente. Mesmo assim, quando entrámos na aldeia, alguns guerrilheiros sobreviventes ainda corriam para nós, para nos atacar: era o absurdo em toda a sua dimensão trágica. Quando lhes perguntámos porque avançavam para nós, sem armas, sem nada, respondiam-nos que “o preto não tem medo de bala de branco; morre aqui, nasce além”. Era uma versão radical de alguns textos dos nossos poetas neo-realistas quanto afirmavam que “por cada um que tombasse mil se levantariam”: uma leitura lateral do marxismo para servir os desígnios da luta ideológica.
O feitiço volta-se, quase sempre, contra o feiticeiro. E, neste caso, nós só tivemos, 5 baixas, um número residual comparado com as centenas de corpos que ficaram espalhados pelo kimbo: afinal, nós passámos e eles ficaram caídos no seu próprio chão e com eles muitos inocentes. Eu, o deus-máquina, fiquei encarregue de abrir uma vala onde coubessem todos aqueles cadáveres: era preciso esconder a vergonha.
A operação Mocondo, foi considerada, na altura, uma operação fundamental para limitar as bases da guerrilha naquela zona e libertar Nambuangongo. Estiveram lá repórteres da Emissora Nacional que seguiram toda a operação, descrevendo de forma muito limitada, tudo aquilo. Nós estávamos a ouvir a rádio, os locutores a dizerem que tudo “estava bem com as nossas tropas” e nós, ao mesmo tempo que isto ouvíamos, enterrávamos 5 cadáveres nossos, para além das centenas de africanos atirados para a vala comum. Esses documentos, da nossa rádio oficial, se existem, não poderão ser usados quando se fizer a história definitiva desses dias como documentos fidedignos, que o não são. Mas a história, como sabemos, nunca é definitiva e nem sempre fiel aos acontecimentos que relata; está sempre condicionada por circunstâncias que lhe são exteriores, de acordo com os interesses do momento ou com as convicções de quem a escreve.
4. As Feridas Invisíveis
Prosseguimos a marcha, com alguns prisioneiros (poucos, a maioria dos guerrilheiros conseguiu fugir para a mata) e chegámos a outra aldeia chamada Muchuando, onde estacionámos mais uns dias. Aí ainda tivemos alguns recontros com a guerrilha, mas sem grande importância, uns ataques com canhâgulos, catanas e pouco mais. Não tivemos baixas. Os nossos problemas já não eram o medo da morte, já tínhamos convivido tanto com ela que já não nos afectava; ou afectava, só que nós já lhe estávamos indiferentes. Os nossos problemas eram físicos, era o cansaço, a má alimentação, o calor, as condições em que nos era dado sobreviver. Claro que por dentro ia crescendo essa ferida sem nome, esses lanhos invisíveis que um dia haveriam de explodir. Mas ali, no meio da mata, no reino dos assombros e do medo, a nossa única preocupação era sobreviver, era prolongar o instante porque cada minuto contava: não nos sobrava tempo para nos pensarmos, para introspecções mais ou menos psicológicas.
O tempo que ficámos em Muchuando se deu para retemperar as forças, deu-nos tempo para outras tarefas mais práticas: abrimos uma pista, criámos algumas infra-estruturas básicas. Desde o Pir, Mocondo, Muchuando, pelas localidades por onde passávamos, íamos estabelecendo unidades, criando formas de controle. Ou seja, o Batalhão ia-se disseminando pelas zonas conquistadas, actuando como um verdadeiro exército de ocupação.
De Muchuando seguimos para o Tar e Lifune. Nessas povoações também tivemos alguma resistência mas sem grandes consequências. A nossa experiência, nessa altura, já era grande de modo que nos era mais fácil ultrapassar esses focos da guerrilha. No Lifune tivemos que construir outra ponte, demorámos alguns dias, foi uma tarefa extremamente complicada, era tudo feito a braços, quase sem equipamento adequado, a minha máquina era o único apetrecho preparado para aquelas tarefas. Aí, durante a construção da ponte, sofremos vários ataques da guerrilha e tivemos mais uma ou duas baixas, já não me recordo bem.
Quando chegámos a Nambuangongo, juntaram-se-nos mais três unidades: o Batalhão 114, ficou em Beira Baixa. Consideraram não ter condições para avançar, não tinham máquinas, não tinham apoio logístico, de modo que ficaram estacionados em Beira Baixa. O Batalhão 149, que ia no trajecto de Ambriz, em direcção a Zala, juntou-se-nos. Todo o percurso em direcção a Zala foi fácil, não havia obstáculos, as picadas eram razoáveis, no resto serviram-se das picadas que a minha unidade tinha construído. ( O meu Batalhão, para que conste, era o 96).
Chegados a Nambuangongo, foi a grande confusão. Para lá confluíram 3 batalhões, a Força Aérea, os Pára-quedistas, Comandos, etc. Apareceu, entretanto, um comandante dos Pára-quedistas a dizer que iam saltar sobre o objectivo e que nós teríamos de fazer um círculo em volta, nas zonas mais baixas, de forma a pudermos apanhar todos os que tentassem fugir. Ou seja, cabia-nos a parte menos activa da operação e aquela que em termos operacionais seria apenas subalterna, de recolha de sobejos. O comandante do meu Batalhão entendeu que assim não valia, que depois de todo o esforço e luta para chegar a Nambuangongo não iríamos ficar com as sobras da operação. Recordo-me que houve entre o meu comandante e o comandante dos Páras um diálogo muito aceso que levou a um conflito de comandos. Resultado: ficámos sem comando durante uns tempos, gerou-se alguma indefinição entre o comando de Batalhão e o Estado Maior, levando a que o nosso comandante de Batalhão fosse transferido para Moçambique. Claro que o que estava em causa era uma filosofia antagónica, não sobre protagonismos, mas sobre formas de actuação no terreno. Esta situação deixou-nos indignados, não queríamos aceitar o afastamento do nosso comandante, não só porque tínhamos confiança nele como tínhamos criado relações afectivas, o que é essencial em situações extremas como aquelas em que vivíamos. O nosso Tenente-Coronel Maçanita, era um homem recto e moderado, soube-mo-lo mais tarde, em contraste com as opções mais extremadas, de terra queimada que eram as opções que se desenhavam no terreno.
5. Em Nambuangongo, tu não viste nada
A Operação Nambuangongo foi muito complexa. Algumas companhias estacionaram em Quipedro, outras em Nambuangongo e outra em Onzo. Eu, entretanto, fui dar apoio a várias unidades de Infantaria, para Vista Alegre, Aldeia Viçosa. Aí, deparei-me com uma situação perfeitamente insólita, se é que existem na guerra situações lógicas e racionais. Fizemos o envolvimento a uma aldeia na convicção de que ali existiriam guerrilheiros infiltrados. A ideia inicial, pelo menos a que nos tinha sido transmitida, era a de se fazer o envolvimento do kimbo e tentar capturar algumas pessoas para depois serem interrogadas. Não foi isso que aconteceu, infelizmente. O comandante, alterando a ordem inicial, ordenou-me que entrasse na “aldeia” com a rectro e destruísse todas as palhotas, tudo o que encontrasse pela frente. Olhei-o, espantado, a estupefacção a morder-me as entranhas. Não queria acreditar em tamanho absurdo. Voltei-me para ele, olhei-o nos olhos e disse-lhe que não com a firmeza possível, isso eu não faço. O que me ordena é crime, é uma desumanidade sem nome. O comandante continuou a olhar-me furioso, o olhar desvairado, espumando de raiva e ameaçou-me com o Conselho de Guerra, “faço-lhe a folha”, disse-me aos gritos, a fúria castrense toda espelhada nos olhos dementes. Não tenho medo de tribunais, de conselhos de guerra, de prisões, meu comandante, só tenho medo da minha consciência: isso, eu não faço – sou um soldado, não sou mercenário nem assassino. Voltou a gritar, a loucura a tomá-lo por inteiro, ou então era eu que imaginava que os homens em seu juízo se não podiam comportar assim. Ordenou-me que saísse da máquina, a arma apontada. Saí e afastei-me para não ver o que já imaginava.
A noite fez-se mais funda, o silêncio a doer nos ossos, o corpo trémulo do paludismo, das febres, de todos os assombros. A bulldozer entrou no kimbo e destruiu tudo, tudo, as palhotas, os haveres, as mulheres, os velhos, as crianças, tudo o que dormia no coração grande e silencioso da mata – a minha máquina transformada em máquina do inferno, arrastando na noite os gritos, a dor, o sangue, os pesadelos todos. Fechei os olhos, recusava-me a ver o inenarrável estertor dos sobressaltos, as marcas do horror cravadas na pele para a vida toda.
NAMBUANGONGO, MEU AMOR
Há um veneno em mim que me envenena,
Um rio que não corre, um arrepio...
Fernando Assis Pacheco – Cuidar dos Vivos
Em Nambuangongo tu não viste nada,
não viste nada nesse dia longo longo
a cabeça cortada
e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo.
Falavas de Hiroxima, tu que nunca viste
em cada homem um morto que não morre.
Sim nós sabemos Hiroxima é triste
mas ouve em Nambuangongo existe
em cada homem um rio que não corre.
Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto
Em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece
em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu. Tu
não sabes mas eu digo-te: dói muito.
Em Nambuangongo há gente que apodrece.
Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.
É justo que me fales de Hiroxima.
Porém tu nada sabes deste tempo longo longo
Tempo exactamente em cima
do nosso tempo ai tempo onde a palavra vida rima
com a palavra morte em Nambuangongo.
Manuel Alegre (Livro “Praça da Canção”)
6. OUTRAS GUERRAS
Depois do episódio de Nambuangongo, fui sendo colocado em diversas Companhias. Nunca mais vi o oficial que me tinha ameaçado. O caso da minha eventual punição, ficou por aí.
A guerra, depois de Nambuangongo, começava a ser mais branda no Norte, também menos cruel. Continuámos, claro, a ser atacados, em emboscadas, mas eram coisas esporádicas e sem graves consequências. Podíamos, finalmente, descansar um pouco dos meses de desgaste físico e psicológico.
O nosso trabalho, que tinha sido pioneiro, permitiu que diversas unidades se estabelecessem no terreno e pudessem controlar melhor os movimentos dos guerrilheiros. Toda a região dos Dembos estava controlada, com unidades espalhadas nas zonas mais sensíveis.
Esta nova realidade, o estarmos finalmente acantonados, permitiu que passássemos a comer de forma mais decente: abandonámos a ração de combate, era possível agora comermos refeições quentes, um luxo a que já tínhamos perdido o gosto.
A partir de então, a minha máquina passou a ter uma missão muito mais pacífica, retornando ao essencial da sua função. Fazia abrigos, abria estradas, aplanava os terrenos para os kimbos, pistas para o Nord-Atlas, o pássaro grande que nos trazia a paparoca e as notícias da família e das namoradas e as notícias (sempre vigiadas) do mundo.
Fui colocado depois num Esquadrão de Cavalaria, o 149, que passou a dar-me protecção, a mim e a outros camaradas do Batalhão de Engenharia. Nesse Esquadrão, onde estive integrado alguns meses, acabei por fazer grandes amizades. Aliás, nós tínhamos vinte anos, a generosidade própria dos verdes anos e a nossa situação extrema, as angústias e os medos vividos em comum, modelaram amizades para a vida toda. Existia, compreendi-o então, um espírito solidário, de fraterna camaradagem que nos uniu. Aliás, se assim não fosse, esses dias da guerra teriam sido ainda mais insuportáveis. Pertencíamos ao mesmo país, fazíamos parte da mesma cultura, tínhamos a mesma língua – embora pertencêssemos a regiões diversas. Isso, e os medos ungidos em comum, uniu-nos para sempre. Por tudo isso, pelo que passámos juntos, pelo que sofremos juntos, por tudo o que vimos e fizemos, ainda hoje, passados todos estes anos, quando nos encontramos, é uma festa, é o reencontro de irmãos.
Em relação a isto, à amizade, a guerra foi muito importante, obrigou-nos a olhar o outro, a cuidar do outro, a não olharmos apenas para os nossos pequenos problemas pessoais, as nossas angústias, os nossos sonhos, o nosso estrito mundo: a guerra fez-nos solidários.
Antes da guerra, eu apenas conhecia os rapazes e as raparigas da minha terra e da minha geração, os poucos colegas de trabalho, pouco mais. A guerra abriu-nos ao país, a gente do norte e do sul, a filho de muita mãe, como então se dizia. Os desconhecidos passavam a ser os nossos amigos mais chegados, os nossos mais íntimos confidentes, como sempre nos tivéssemos conhecido, como se não existissem distâncias geográficas, modos de vida diversos – a guerra unia o que era diferente, o que andava solto.
Estive numa unidade de Comandos, de tropa preparada, treinada para os combates mais duros, mentalizados para uma obediência quase canina aos ditames do poder, sobretudo preparados para não pensar, para não questionar as ordens do superiores hierárquicos, mesmo quando essas ordens eram arbitrárias e injustas; moldados, ao estilo americano, para as missões mais difíceis no plano militar mas igualmente no dos direitos humanos. Nessa Unidade tive a oportunidade de conviver com o Capelão. Era um indivíduo afável, sem aquele ar que alguns padres têm de quem está sempre à espreita dos pecados do mundo. Um dia, em cavaqueira amena, perguntou-me qual a razão porque que eu não comparecia às missas, nunca me tinha visto nesses rituais que ele considerava essenciais para nos libertar a alma dos pesos que ela comporta, sobretudo quando o nosso ofício era o de matar e morrer, num estreito convívio com a morte. És o único, dos quatrocentos e tal homens que aqui estão, que não vai à missa, disse-me, olhando-me inquisidor. Que se passa? Respondi-lhe, também de forma cordata, que não ia porque não estava habituado, não fazia parte das minhas rotinas, não que tivesse alguma coisa contra o catolicismo, ou contra outra religião qualquer. Era uma questão de hábito e eu não fora habituado a frequentar esses espaços de liturgia. Ele sorriu e disse-me, Olha, se fores à Missa, dou-te esta imagem de Nossa Senhora de Fátima. Senti-me, de repente, como um miúdo a quem se dá um rebuçado para fazer um recado. Senhor padre, só vou à Missa se for obrigado. Passou-me a imagem para a mão e a conversa ficou por aí. Ainda hoje guardo essa imagem de Nossa Senhora, é uma imagem que me foi dada por um amigo, pela qual nada dei em troca. Tenho a minha Fé e estou vivo, com muitos lanhos por dentro é certo, mas vivo e desperto para as complexidades da vida: isso me basta.
7. AS INTERROGAÇÕES
Passados que foram os dias mais cruéis da guerra, a relativa paz que usufruíamos, a calma proporcionada por uma estabilidade maior, pelo aquartelamento, levou-nos a pensar a guerra em moldes diferentes. Aquele teatro de morte, o ver no outro, só porque era negro e miserável, o inimigo em potência não fazia sentido. Penso que nesta mudança de atitude, que mais tarde foi compreendida por alguns oficiais do quadro mais arejados mentalmente – não arrisco chamar-lhes “progressistas”, por que o não eram, de facto -, se ficou a dever aos milicianos, praças, sargentos e oficiais, que tinham outra preparação, um sentido não restrito da cartilha militar. Entendíamos que precisávamos conquistar as populações, tê-las do nosso lado, que não nos devíamos comportar como tropa de choque, de ocupação, agentes da terra queimada. Era fundamental, para nós, fazer passar a mensagem de que estávamos ali para ajudar, para colaborar com elas, para resolver alguns dos seus problemas e de que não precisavam de ter medo de nós, nem de andar fugidos na mata. Nós não éramos “terroristas”, éramos “amigos” e estávamos ali para os ajudar e proteger. Era uma filosofia diferente, contrária aos ditames iniciais da guerra que nos obrigava a disparar sobre tudo o que na mata se agitasse. Os milicianos introduziam, embora ainda de forma titubeante, alguma humanidade no cenário de guerra.
Começámos a abrir picadas, a construir kimbos, a apoiar as populações com assistência médica e comida. Era a psicossocial a dar, em Angola, os primeiros passos, num sentido que nos pareceu, nesses dias de brasa, possível e correcto. Isso não impediu, claro, que muitas populações se mantivessem na mata, desconfiadas e com medo – com medo de nós e dos chamados “turras”, evidentemente.
Nas tarefas de construção das picadas, acontecia normalmente, passarmos algum tempo fora do aquartelamento. Os camaradas iam-nos levar a comida, mas quando esta chegava já estava fria, para além da qualidade que deixava muito a desejar. Por isso, comíamos pouco e mal. Deixávamos os caldeiros com as sobras da comida na picada e quando regressávamos no outro dia encontráva-mo-los vazios. Era um sinal de que havia muita gente na mata fugida e faminta.
Essa presença das sombras esquivas era também detectada por alguns sinais que eram deixados, até pela guerrilha, para que soubéssemos que as coisas não estavam apaziguadas, que a luta continuava e que a guerrilha estava atenta e não vencida. Um desses sinais eram deixados na picada onde trabalhávamos: uns paus colocados no centro da picada com papéis onde nos informavam que nós, a engenharia, “podíamos continuar as nossas tarefas sem medo dos ataques”, porque estávamos a construir o “futuro de Angola”. Este pragmatismo, estava pejado de um cínico humor mórbido mas era perfeitamente entendível naquele tempo e naquele espaço.
Outros episódios, quase marginais à guerra mas que eram consequência do conflito, iam tornando cada dia mais duro e agreste, do ponto de vista moral, a nossa presença ali. Um dia, quatro velhos, que andavam fugidos na mata, vieram-se entregar ao nosso pelotão. Normalmente era eu que os recebia primeiro, dado que ia sempre à frente com a máquina enquanto os meus camaradas, que me faziam protecção, seguiam na retaguarda. Nesse dia, um camarada nosso, completamente passado, alucinado pelo calor, pela fome, pelos mosquitos, ao avistar aquele grupo, quatro velhos, começou a disparar, a disparar desvairado, os corpos a ficarem trespassados de balas de fúria, a raiva irracional a carregar no gatilho, caídos na picada, ali à minha frente e eu sem saber o que fazer, impotente perante o sangue, os corpos prostrados. Da mata surgiu uma criança aos gritos, a dor estampada no rosto, a abraçar-se à mulher caída na picada, a agitar aquele corpo, a tentar perceber. O meu camarada louco, possesso de todos os demónios que um homem pode albergar dentro de si – e como, só em situações extremas, o sabemos – retirou o sabre da espingarda e trespassou com ele o corpo da criança, apagando, desse corpo espantado, os gritos e as lágrimas. Para sempre. Revolviam-se-me as entranhas e estivesse quase a pegar na arma e a fazer o mesmo ao meu desgraçado camarada.
A guerra conduz-nos ao mais irracional que em nós existe, expõe o primitivo animal que em nós subjaz.
Essa situação contribuiu, conjuntamente com todas as outras, para a revolta que em mim ia crescendo, para o acentuar das dores intimas, para a sensação de viver um pesadelo medonho, permanentemente no centro do absurdo. Comecei a perceber que a guerra não fazia sentido, que nos tinham colocado numa armadilha para nos desumanizarmos até nos tornarmos numa coisa sem alma, meros autómatos ao serviço dos objectivos do poder.
Os meus colegas não se interrogavam, viviam esses dias como se nada se tivesse passado, como se vivermos permanentemente o absurdo fosse o mais natural das nossas vidas, dos nossos vinte anos a ficarem marcados a fogo e sangue – e cadáveres, centenas de cadáveres espalhados nos esconsos da memória, envenenando-me os dias, sobressaltando-me as noites.
O horror desses dias tinha de parar. Era insuportável e suicida, mesmo para um regime ditatorial como o nosso, continuarmos nessa política de terra queimada, de destruição das sombras. Era necessário, pensámos, acabar com a matança de populações vulneráveis e indefesas. Foi a partir daí que os comandos começaram a utilizar a chamada psicossocial, ou seja, uma tentativa inteligente e humanizada de integrar as populações e de as manter do nosso lado. Começámos a construir kimbos junto dos aquartelamentos, a dar-lhes assistência médica, a instruí-los na melhor forma de amanho das lavras, a criar um género de milícias a que chamámos GE (Grupos Especiais) no sentido de proverem à sua auto-defesa. Criávamos assim, as bases para o apaziguamento e para a Paz.
Eu próprio participei, com entusiasmo nessa nova etapa, dessa era nova que se abria nas relações do nosso Exército com as populações autóctones. Inventei um módulo para a fabricação de tijolos, módulo que lhes permitiu poderem construir as habitações de forma mais sólida e duradoura. Foi um êxito esse invento. Ensinámos, igualmente, a construir os telhados sem o capim habitual mas utilizando um género de telha portuguesa, as divisões das casas, etc. Este era, quanto a mim, o rumo certo para deixarmos a nossa marca civilizacional em Angola. Mas durou pouco esta euforia, esta nova estratégia iniciada por pressão, sobretudo, das tropas milicianas. Os altos quadros militares cedo se aperceberam que, a continuar-se essa via, a guerra terminaria em breve, que o novo “maná” que a guerra representava estaria próximo de se extinguir ou de deixar de ter significado bélico preponderante por forma a justificar a nossa presença em massa, no terreno. Era, de novo, preciso acicatar o ódio, perpetuar a revolta, esticar a corda até onde fosse possível. A continuação da guerra, significava para muita gente, dinheiro e poder. A guerra durou, como sabemos, mais dez anos.
No resto, a vida continuava, com as mesmas rotinas, os mesmos sobressaltos e a mesma ignorância do que se passava fora do perímetro do aquartelamento. Jornais não havia, a rádio era só a Emissora Nacional. Por vezes, e clandestinamente, ouvíamos a Rádio Moscovo, ou a Rádio Portugal Livre, de Argel. Normalmente as palavras de ordem aí difundidas eram incentivos à deserção e à revolta, despertando-nos para a injustiça que aquela guerra representava, tanto para nós como para os povos que lutavam pela independência.
Trinta meses depois de permanecer em zona operacional regressei à minha Unidade, em Luanda. Quando me apresentei, o meu comandante começou a olhar para mim e perguntou-me quem eu era, sou fulano de tal e pertenço a esta Unidade, meu comandante: o homem nunca me tinha visto.
A guerra foi uma experiência única, mesmo nas situações mais extremas e negativas. Mesmo quando vês os teus companheiros caírem ao teu lado, ou deles sabes o destino já depois dos pesadelos terem acabado, como foi o caso de um camarada que apanhou uma doença venérea (que era comum apanhar-se, dado não termos muitos cuidados nas “visitas” às prostitutas), que não soube cuidar-se e quando deu por isso já era tarde, já a doença tinha avançado irreversível. Soube que tinha embarcado para a Metrópole juntamente com os outros, mas nunca chegou a desembarcar na Rocha de Conde de Óbidos. Perde-se no mar como outros se perderam no verde coração das matas angolanas.
8. Depois da guerra fiquei em Angola
Já os meus camaradas iam em alto mar quando eu passei à disponibilidade. Tinha decidido ficar em Angola. Tinha criado raízes naquele chão, tinha, apesar das vicissitudes porque passara, ganho amizade por aquele espaço, por aquela gente.
Casei e por lá fiquei, um pouco aos tombos, sentindo ainda na pele a dureza dos anos de guerra. A minha companheira era, à época, empregada de um alto responsável do governo da Província e este prometeu-me emprego, um bom emprego, mas exigindo, como contrapartida, que eu abandonasse as posições críticas que tinha em relação à nossa presença em Angola. Recusei, naturalmente. Vi-me, por isso, compelido a sair de casa, chegando ao extremo de deixar um bilhete à minha mulher onde lhe explicava que me via obrigado a procurar emprego noutras paragens e a só regressar quando o encontrasse.
Fui para o sul de Angola. Aí encontrei um ex-comandante que estava a tomar conta de um organismo do Estado, que me incentivou a ficar em Angola. Estive na zona de Nova Lisboa, na Cela, a trabalhar e aí pude, finalmente, estabelecer-me, desenvolver a minha actividade profissional e criar raízes suficientes para fortalecer os laços familiares. Em Cela nasceu a minha filha. Aí estive mais de dois anos, até que comecei a receber cartas de casa, o meu pai a lamentar-se que há cinco anos que não me via, não conhecia a nora, não conhecia a neta. Aquilo começou a fazer caminho, também eu tinha saudades de casa, de modo que assim que pude juntar uns cobres, regressei a Portugal no velho Quanza.
De regresso a Portugal, arranjei trabalho como operador de máquinas e também como mecânico de máquinas pesadas, em Lisboa.
Em 1969, regresso a Angola. Fui, na altura, trabalhar para a Diamang, que era uma grande empresa, estatal, de diamantes. Fiz dois contratos mas no final comecei a sentir alguns sintomas, os sinais já da doença que a guerra me tinha deixado a nível psicológico – durante anos não me apercebi desses sintomas, mas eles estavam lá e começaram a aparecer, a destruir-me por dentro. As feridas invisíveis começavam a abrir.
Apesar de tudo, Angola será sempre a minha segunda pátria- em África vivi os melhores anos da minha vida, os mais fecundos, os que me obrigaram a crescer como homem e como ser humano; a ter plena consciência do tempo que me coube viver,
NOTAS FINAIS
Regressei a Angola, em 1988 e 1992, como cooperante dos Ministérios da Indústria e Agricultura.
Angola ficaria, para sempre, moldada à minha pele, como uma segunda pátria.
Aquando desses regressos esporádicos, não pude deixar de me sentir profundamente magoado com o que via. Luanda era (penso que ainda é) uma cidade de contrastes chocantes, porventura piores do que aqueles que se verificavam no tempo colonial: a miséria anda visível e estropiada pelas ruas, o cheiro que vem dos musseques inunda tudo, as doenças e a fome alastram, enquanto na Ilha os restaurantes de luxo crescem como cogumelos e uma nova burguesia possidónia e insensível vai tomando de assalto as margens de um poder que se perde nas suas próprias contradições.
Os meninos da guerra, órfãos de tudo, deambulam por uma cidade em busca de auxílio e de horizontes – horizontes que parecem cada dia mais fechados e sem esperança. E há, pelas ruas, montes de mestiços, homens e mulheres de olhos azuis e pele de ébano que dos progenitores apenas conheceram a mãe. Também isso a guerra fez, essa identidade imaculada, essa metade do sangue que ficou por saber de onde lhes veio; milhares de homens e mulheres perdidos pelas imensas terras angolanas que nunca saberão que homens os geraram em noites de sobressaltos e solidões partilhadas na esteira de uma qualquer cubata perdida nas matas de Angola. As nossas culpas de guerra, as culpas tidas individualmente, se aos vinte anos se tem essa consciência, para mais quando se fazia uma guerra a contra a vontade, foi a de ter deixado muito órfão de pai, muito filho que nunca conhecerá a outra metade. Mas isso, são as consequências laterais de uma guerra. Quando os povos se misturam, em situações limite, os resultados são quase sempre esses: também nas pessoas ficam esses evidentes sinais de uma tragédia vivida em comum.
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